quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Encantos de Cortázar



Gosto muito de Julio Cortázar, principalmente de seus contos. Quando eu tinha uns 13 ou 14 anos, meu irmão levou Bestiário para casa. Fiquei impressionada com “Casa tomada”, que permanece até hoje como um dos meus contos favoritos. Também adoro “Cartas de mamá”. Uns anos atrás, traduzi “Continuidad de los parques” a pedido de um professor amigo da UFSC que usou a tradução em suas aulas. É um conto muito interessante, circular, no qual realidade e ficção se entrelaçam. Vale a pena ler. Abaixo, eis a minha tradução.

Continuidade dos bosques

Começara a ler o romance alguns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à fazenda. Deixava-se envolver lentamente pela trama, pelo desenho das personagens. Nessa tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador e discutir com o administrador uma questão de arrendamentos, voltou ao livro na tranqüilidade do estúdio que dava para o bosque dos carvalhos. Acomodado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria importunado como uma irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse vez e outra o veludo verde e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforços os nomes e as imagens dos protagonistas, a ilusão novelesca invadiu-o quase em seguida. Gozava do prazer quase perverso de desprender-se linha a linha do que o rodeava e sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do encosto alto, que os cigarros seguiam ao alcance da mão, que mais além dos janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pelo sórdido dilema dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se ordenavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana da montanha. Primeiro entrava a mulher, temerosa; agora chegava o amante, com o rosto machucado pela chicotada de uma rama. Admiravelmente ela estancava o sangue com seus beijos, mas ele rechaçava as carícias, não havia vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal amornava-se contra seu peito e, por baixo, pulsava a liberdade escondida. Um diálogo ofegante corria pelas páginas como um arroio de serpentes, e sentia que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como querendo retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame sem piedade interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma face. Começava a anoitecer.
Já sem se olhar, atados rigidamente à tarefa que lhes esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia seguir pela trilha que ia para o norte. Da trilha oposta, ele voltou-se um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu também, esquivando-se de árvores e de cercas até distinguir na bruma malva do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cães não deviam latir, e não latiram. O administrador não estaria àquela hora, e não estava. Subiu os três degraus do alpendre e entrou. Do sangue galopando em seus ouvidos chegavam as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um corredor, uma escadaria atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta da sala e, então, o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

Julio Cortázar
Tradução de Marlova Aseff