sexta-feira, setembro 08, 2006

BORGES E O SUR MÍTICO


"Nos vazios do silêncio escreve-se a história dos homens. Tecido de palavras sussurrantes que o contista organiza em narrativas únicas. No solo polvilhado de farinha de cevada torrada em torno do qual juntam-se os ouvintes, ressoam os cascos de um cavalo. O som eleva-se entre o sonho e nós, como uma poeira dourada. O herói passou e deixou seu vestígio na areia de nossas memórias, onde sobreviverá. Mito ou conto? Pode parecer inútil querer delimitar assim os territórios do imaginário."(Bernadette Bricout)
Por MARLOVA ASEFF


1. Introdução
Nos primeiros livros de ensaios e de poemas de Jorge Luis Borges, encontramos uma preocupação que o acompanharia durante boa parte de sua vida intelectual e que assumiria, no entanto, formas distintas ao longo do tempo. Nesse período (1923-1930), Borges manifestava o desejo de que sua escrita alcançasse um caráter genuíno e refletisse características peculiares de seu país de origem, a Argentina. A perseguição desse objetivo lhe tomou anos de experimentos estéticos e também de reflexões sobre o regional e o universal no fazer literário.
O presente artigo pretende analisar os esforços do jovem Borges em traduzir o caráter argentino em uma literatura original, a tentativa inicial de mitificar Buenos Aires, o pampa e os subúrbios e, enfim, como ele, ao longo de sua trajetória, e depois de abandonar a linguagem de cunho regional, consegue representar sentimentos emblemáticos da argentinidade presentes em contos como “El Sur”, “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz”, “La otra muerte”, entre outros, quando elementos de sua literatura alcançam a dimensão de mito de uma região. Também veremos a influência do pensamento de Domingo Faustino Sarmiento sobre a literatura de Borges e na sua construção do que vamos designar de espaço mítico chamado Sur.
2. Em busca do mito
Em 1921, Borges regressa com sua família a Buenos Aires depois de viver sete anos na Europa. Tinha 22 anos e, tomado de encanto, redescobre a cidade que se torna o principal objeto de sua produção literária. Em 1923, publica o livro de poemas Fervor de Buenos Aires. Seu objetivo, como esclarece no prólogo da obra, é o de exaltar a cidade:
Mis versos quieren ensalzar la actual visión porteña, la sorpresa y la maravilla de los lugares que asumen mis caminatas. (....) Aquí se oculta la divindad, habla mi verso para declarar el asombro de las calles endiosadas por la esperanza o el recuerdo. Sitio por donde discurrió nuestra vida, se introduce poco a poco en santuario (Borges 1997:162).
Na escolha das palavras “divindad”, “endiosadas” e “santuario”, está claro o desejo de sacralizar Buenos Aires. Em seguida, também fica fascinado pela vida nos subúrbios. Seu universo poético então começa a ser habitado por compadritos e gauchos. Nesse sentido, Ana María Barrenechea afirma que “a máxima glória” para a geração de escritores à qual pertencia Borges era
(...) Descubrir asuntos inéditos en el arte, dar vida literaria a objetos antes no vistos por los poetas; además, como hombres del nuevo continente, pensaban que esos objetos debían buscarse en la propia tierra americana y decirse con la voz propia del país (Barrenechea 2000:15-16).
No ensaio “La pampa y el suburbio son dioses”, publicado no livro El Tamaño de Mi Esperanza, de 1926, Borges fala do caráter arquetípico do pampa e dos arrabaldes e os elege como as únicas contribuições genuinamente argentinas à literatura mundial. Ou seja, se havia algo peculiar à cultura argentina, deveria ser procurado na vastidão do pampa ou na desordem dos subúrbios: “De la riqueza infatigable del mundo, solo nos pertenecen el arrabal y la pampa” (Borges 2000:30).
Nesse texto, Borges define o caráter arquetípico como relativo a “coisas não sujeitas às contingências do tempo”. Anos depois, no conto de mesmo nome, classificaria el Sur como “un mundo más antiguo y más firme” (Borges 1995:271), ou seja: um território fora do tempo como o conhecemos, talvez atemporal e ancestral. Borges também escreve que o pampa e os subúrbios são como “totens, coisas que são substanciais a uma raça ou indivíduo”. Observe-se aí o caráter mítico que Borges começa a imprimir a esses dois cenários argentinos na medida em que os qualifica como arquétipos. Para Carl Gustav Jung, de quem Borges era leitor[1], arquétipos são parte do conteúdo imagístico e simbólico do inconsciente coletivo, evidenciado nos mitos e lendas de um povo. “O conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da idéia de inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas da psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar” (Jung 2002:53). Borges também pode ter se inspirado nos conceitos gregos para falar de arquétipos. A doutrina fundamental de Platão prega a existência de formas arquetípicas ou idéias. O discurso de Borges coincide com o conceito platônico, para quem os arquétipos manifestam-se no tempo e são atemporais, constituindo a essência intrínseca das coisas.
No mesmo ensaio, Borges elege Martín Fierro, de José Hernández, as dois Santos Vega* e Facundo, de Domingo Faustino Sarmiento, como pontos cardeais literários da Argentina. E enumera as crenças fundamentais da cultura argentina:
Somos unos dejados de la mano de Dios, nuestro corazón no confirma ninguna fe, pero en cuatro cosas sí creemos: en que la pampa es un sagrario, en que el primer paisano es muy hombre, en la reciedumbre de los malevos, en la dulzura generosa del arrabal (Borges 2000:30).
Esses elementos começam, pouco a pouco, a ser elaborados pelo escritor para assumir um papel definitivo em seu universo ficcional e poético. Borges inicia a concepção do que chamaremos de “Sur mítico”, um espaço imaginário que abarca pampa e subúrbio, gaúchos e personagens suburbanos e, mais do que tudo, traduz sentimentos partilhados pelos habitantes da região do Prata.
3. Relativizando a visão sobre temática e linguagem regionais
Quando publica o livro de ensaios Discusión, em 1932, Borges faz a crítica de concepções expostas em El tamaño de mi esperanza. Ele falará, então, que o escritor argentino deveria ter a liberdade de escrever sobre todo e qualquer tema, e não apenas aqueles defendidos por ele anteriormente.
La idea de que la poesía argentina debe abundar en trazos diferenciales argentinos y en color local argentino me parece una equivocación. Si nos preguntan qué libro es más argentino, el Martín Fierro o los sonetos de La urna de Enrique Banchs, no hay ninguna razón para decir que es más argentino el primero. Se dirá que en La urna de Banchs no está el paisaje argentino, la topografía argentina, la botánica argentina, la zoología argentina; sin embargo, hay otras condiciones argentinas en La urna (Borges 1972:269).
Detentor de vastas leituras, Borges não se contentou com a solução fácil de tratar temas gaúchos com linguagem popular, ou pior, com uma falsa linguagem popular. Em “El escritor argentino y la tradición”, Borges atesta esse fato e demonstra o amadurecimento de suas concepções. Para visualizar melhor a mudança é interessante comparar trechos de “La pampa y el suburbio son dioses” e “El escritor argentino y la tradición”. No primeiro ensaio, afirma: “
Son cuatro puntos cardinales los que señalo, no unas luces perdidas. El Martín Fierro, el Santos Vega, el otro Santos Vega, el Facundo (Borges: 2000:30).

E, no segundo:

Creo que el Martín Fierro es la obra más perdurable que hemos escrito los argentinos; y creo con la misma intensidad que no podemos suponer que el Martín Fierro es, como algunas veces se ha dicho, nuestra Biblia, nuestro libro canónico (Borges 1972:267).

No primeiro:
De la riqueza infatigable del mundo, solo nos pertenecen el arrabal y la pampa (Borges 2000:30).
E no segundo:

Creo que Shakespeare se habría asombrado si hubieran pretendido limitarlo a temas ingleses, y si le hubiesen dicho que, como inglés, no tenía derecho a escribir Hamlet, de tema escandinavo, o Macbeth, de tema escocés (Borges 1972:270).

Gibbon observa que en libro árabe por excelencia, en el Alcorán, no hay camellos (Borges 1972:270).
Quiero señalar otra contradicción: los nacionalistas simulan venerar las capacidades de la mente argentina pero quieren limitar el ejercicio poético de esa mente a algunos pobres temas locales, como si los argentinos sólo pudiéramos hablar de orillas y estancias y no del universo (Borges 1972:271).

Assim, a temática regional que tanto fascinava o jovem Borges, com o passar dos anos, passa a dividir espaço com histórias policiais, fantásticas e de cunho filosófico. Ele promove um rompimento com o regionalismo em voga. Porém, Borges não abandonou de todo os temas locais. O escritor confessa que durante muitos anos seguiu em busca do tom correto para tratar dos temas regionais. Até escrever “La muerte y la brújula”, publicada em 1951, se confessava insatisfeito com suas tentativas de trazer para sua literatura a atmosfera dos subúrbios portenhos.
Durante muchos años, en libros ahora felizmente olvidados, traté de redactar el sabor, la esencia de los barrios extremos de Buenos Aires; naturalmente abundé en palabras locales, no prescindí de palabras como cuchilleros, milonga, tapia, y otras, y escribí así aquellos olvidables y olvidados libros; luego, hará un año, escribí una historia que se llama ‘La Muerte y la brújula’; (...) publicada esa historia, mis amigos me dijeron que al fin habían encontrado en lo que yo escribía el sabor de las afueras de Buenos Aires. Precisamente porque no me había propuesto encontrar ese sabor, porque me había abandonado al sueño, pude lograr, al cabo de tantos años, lo que antes busqué en vano (Borges 1972:270-271).
Borges percebeu que não precisaria necessariamente falar de gaúchos para ser um escritor genuinamente argentino. Tampouco teria de lançar mão de uma linguagem típica ou regional para trazer o sabor de sua Pátria ao texto. Assim, ele apontou um novo caminho para a literatura argentina. Sabia que a literatura gauchesca era um movimento literário, em verdade, engendrado por porteños, intelectuais da cidade que tentavam recriar a atmosfera do campo.
Entiendo que hay una diferencia fundamental entre la poesía de los gauchos y la poesía gauchesca (...). Los poetas populares del campo y del suburbio versifican temas generales: las penas del amor y de la ausencia, el dolor del amor, y lo hacen en un léxico muy general también: en cambio, los poetas gauchescos cultivan un lenguaje deliberadamente popular, que los poetas populares no ensayan (Borges 1972:269).
José Hernández, Estanislao del Campo e Ricardo Güiraldes também tentaram criar um mito sobre a figura do gaúcho. E temos de concordar que suas obras contribuíram para tal. A diferença de Borges foi que ele retirou do discurso o caráter laudatório e heróico, escolheu para seus escritos episódios aparentemente menores e renunciou ao vocabulário típico. Talvez por isso sua literatura tenha transposto os limites do nacional e alcançado a dimensão do universal.

4. A influência de Sarmiento na idéia de Sur
Seja na época em considerava imperativo escrever apenas sobre Buenos Aires, os subúrbios e o pampa, pautando sua linguagem pela “cor local”, seja quando ampliou o leque temático de sua literatura e abandonou a “tradição”, a influência de Domingo Faustino Sarmiento sobre a maneira como Borges via a formação cultural de seu país foi marcante. Borges escreve no prólogo da edição de 1974 da editora El Ateneo: “El Facundo nos propone una disyuntiva – civilización o barbarie – que es aplicable, según juzgo, al entero proceso de nuestra historia”(Borges 1999:11).
Político e intelectual influente, Sarmiento é o autor de Facundo: Civilización y Barbarie, cuja primeira edição é de 1845. A obra, misto de história, romance e ensaio, conta a vida do caudilho Facundo Quiroga, enquanto expõe a concepção de argentinidade de Sarmiento. Ele divide o país, tanto do ponto de vista geográfico como simbólico, em civilização e barbárie. Civilização abrangia tudo que fosse relacionado a Buenos Aires, à cultura, à Europa culta. Barbárie dizia respeito ao interior, à natureza rude, aos índios e gaúchos habitantes dessas paragens. Para Sarmiento, a argentinidade constituía-se em qualidades e defeitos surgidos do choque entre essas duas realidades (Tedio:2000).
A obra de Sarmiento teve e ainda hoje tem grande influência no modo de se pensar a Argentina. Borges, em seus contos sobre compadritos, gauchos, contrabandistas, duelos de cuchilleros explora essa contradição na formação cultural do país. A atração, muitas vezes inconsciente, pela morte violenta ou a indiferença perante a mesma, presentes em vários contos borgianos, é, para Sarmiento, um traço do caráter argentino:
Esta inseguridad de la vida, que es habitual y permanente en las campañas, imprime, a mi parecer, en el carácter argentino, cierta resignación estoica para la muerte violenta, que hace de ella uno de los percances inseparables de la vida, una manera de morir como cualquiera otra, y puede, quizá, explicar en parte, la indiferencia con que dan y reciben la muerte, sin dejar en los que sobreviven, impresiones profundas y duraderas (Sarmiento 1979:23).
O caráter do argentino concebido por Sarmiento aparece claramente na literatura de Borges. Também em suas primeiras experiências literárias, ou quando afirma que “de la riqueza infatigable del mundo, solo nos pertenecen el arrabal y la pampa”, Borges parece seguir as idéias de Sarmiento, que afirmava:
Si un destello de literatura nacional puede brillar momentáneamente en las nuevas sociedades americanas, es el que resultará de la descripción de las grandiosas escenas naturales, y sobre todo de la lucha entre la civilización europea y la barbarie indígena, entre la inteligencia y la materia. (Sarmiento 1971:42).
Borges nunca deixará de explorar essa contradição na formação cultural da Argentina, porém a luta civilização versus barbárie assumirá em sua literatura nuances mais complexas, como no conto “El Sur”, no qual os valores “civilizados” e “bárbaros” coabitam na alma da personagem principal. Como diz Beatriz Sarlo, “as personagens de Borges são marcadas pelo duplo, capturadas por destinos não-transparentes” (Sarlo 1995:52).
Borges retratou com maestria essas duas realidades, nos planos geográfico, simbólico e psicológico. Na literatura de Borges, Sur é o território onde poderiam se manifestar os valores bárbaros observados por Sarmiento. Dessa contradição também nasceria a literatura borgiana:
Borges dibujó uno de los paradigmas de la literatura argentina: una literatura construida (como la nación misma) en el cruce de la cultura europea con la inflexión rioplatense del castellano en el escenario de un país marginal (Sarlo 1995:51).
Como bem observa Sarlo, o autor também utilizou em vários momentos de sua obra a concepção de fronteiras (orillas) para demarcar a separação entre civilização (as coisas da cidade) e o “Sur”. Essa concepção começou a formar-se nos anos 20 e se fez presente na produção literária de Borges até o fim. “Borges trabajó con todos los sentidos de la palabra "orillas" (margen, filo, límite, costa, playa) para construir un ideologema que definió en la década del veinte y reapareció, hasta el final, en muchos de sus relatos” (Sarlo 1995: 52).
Um exemplo desse transpor de fronteiras é o personagem Juan Dahlmann, que sai da zona civilizada da biblioteca e acaba num território regido por outras leis: “Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia. Dahlmann solía decir que ello no es una convención y que quien atraviesa esa calle entra en un mundo más antiguo y más firme” (Borges 1995:271).
Com essas frases, Borges delimitou o primeiro marco desse espaço mítico-imaginário que chamamos de Sur. Mas baseado em que base podemos afirmar que a idéia de Sur é realmente um mito?
5. Sur: mito ou simples tema literário?
Primeiramente, é preciso conceituar o que se entende por mito e, mais precisamente, por mito literário, pois essa palavra tem sido usada com diferentes acepções por diversas áreas do saber. Para o etnólogo, mito é uma história de verdade que aconteceu no começo dos tempos e que serve de modelo para o comportamento humano. Já o sociólogo exalta imagens-força capazes de exercer fascínio coletivo de certo modo comparado aos mitos coletivos (Dabezies 1997:731). Todas essas definições poderiam ser aplicadas à concepção de Sur, mas creio que as idéias de Jung são mais adequadas neste caso.
A teoria junguiana designa sob o nome de mito uma imagem capaz de cristalizar energias de um indivíduo ou de uma coletividade favorecendo projeções e transferências sob uma palavra de ordem ou sobre um ideal comum. O fenômeno seria mais visível quando este ideal se revela inconfessável porque contradiz muito diretamente os valores admitidos (Dabezies 1997:731). Nesse sentido, é possível supor que a idéia de Sur como imagem fascinante nasce do conflito da negação do lado mais “instintivo” ou “menos civilizado” da sociedade argentina. Afinal, como admitir uma certa atração pelos valores “bárbaros” em uma sociedade que fazia um esforço para modernizar-se, que acreditava piamente nos valores de civilização vindos de países como França e Inglaterra?
Esses dilemas referentes ao instinto e à cultura foram objeto de estudos de Freud. No ensaio “O Mal-Estar na Civilização” (1930), o psicanalista sustentou que “a sublimação do instinto constitui um aspecto particularmente evidente do desenvolvimento cultural, e que não se pode desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto” (Freud 1978:157). No entanto, para Freud, uma parcela da nossa própria constituição psíquica é inconquistável (Freud 1978:148), o que explicaria a permanente atração pela liberação do instinto. Assim, os anseios reprimidos (ou sublimados) de ser menos racional e civilizado, de dar vazão a comportamentos mais instintivos, são canalizado para a imagem do Sur como um espaço mítico que cristaliza as energias da coletividade. Esse espaço mítico-imaginário abrigaria homens livres e corajosos, que não temem a morte e que liberam suas energias vitais sem a repressão civilizatória.
Mas como alguns textos de Borges chegaram a tomar força de mito? O Dicionário de Mitos Literários propõe que na literatura seja considerado mito um relato (ou uma personagem implicada num relato) simbólico que passa a ter valor fascinante (ideal ou repulsivo) e mais ou menos totalizante para uma comunidade humana mais ou menos extensa, à qual ele propõe a explicação de uma situação ou forma de agir (Dabezies 1997:731). Note-se aí que o conceito de mito literário é bastante semelhante às considerações de Jung e de Freud. A palavra “fascinante” tenta descrever os efeitos classicamente atribuídos ao “sagrado” num mundo dessacralizado. Assim, numa sociedade dessacralizada, a produção literária representaria ainda um dos campos privilegiados onde o mito pode exprimir-se (Dabezies 1997: 735). É interessante perceber como Borges buscou exprimir o mito desde o início de sua produção literária. Vale também sublinhar que Borges não criou o mito Sur, mas sim o reinscreveu no imaginário coletivo:
Na criação literária, o mito intervém na relação do escritor com sua época e seu público: um escritor exprime sua experiência ou suas convicções através das imagens simbólicas que repercutem um mito já ambientado e/ou são reconhecidas pelo público como exprimindo uma imagem fascinante (Dabezies 1997:732).

O conflito Civilização versus Barbárie já havia sido elaborado literariamente por Sarmiento pelo menos 70 anos antes de Borges lançar seu primeiro livro. Certamente, já era latente desde o começo da formação da sociedade argentina. Também o mito do Sur, enquanto narrativa, não está contido apenas no conto “El Sur”, pois um mito não é identificável com um único texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita imagens míticas:
O mito não se reduz a um tema simbólico simples, ele possui uma estrutura dinâmica que combina episódios, personagens e situações de acordo com uma dialética sempre original (Dabezies 1997: 733).

Assim, o conto intitulado “El Sur” é apenas uma das narrativas formadoras desse mito. Também personagens e situações de outros contos de Borges, como “La otra muerte”, “Emma Zunz”, “El muerto”, entre outros, se combinam na obra de Borges para criar o Sur mítico.
A concepção de Sur ainda é vigorosa na cultura gaucha. Quero citar apenas dois exemplos de como essa “idéia fascinante” de Sur continua presente: uma canção do músico e compositor brasileiro Vitor Ramil[2], e outra do cineasta argentino Fernando Solanas. Ramil escreveu a canção “Subte”, que pode ser considerada uma reedição da viagem de trem feita por Dahlmann, rumo ao Sul. Lemos na letra:
Yo dejo el sol detrás de mí
Y bajo hondo en la ciudad
La lengua que hablan por aquí
Es toda hierro y oscuridad
Del túnel llega una luz
La luna me viene a buscar

Hay tanta gente en el vagón
Todos me miran sin parar
Sus ojos sueñan mi visión
¿Qué hago yo en este lugar?
El túnel me hace comprender
La luna me puede llevar

Yo veo el tiempo en la pared
Que pasa y siempre queda allá
Yo veo la vida en el tren
Inmóvil puedo en él viajar
El túnel negro es la razón
La luna me hace delirar

Sur
Subtemoon
Subtedream
Yo viajo en el Subtesur
Yo viajo en el Subtemí

Desta vez, a viagem pelo Sur é no metrô, um trem subterrâneo que viaja num túnel escuro. Uma viagem interior “en el subtesur, en el subtemí”, onde o Sur está “dentro de mim”, o túnel negro é a razão, e a luz da lua chama ao delírio. Mais uma vez, civilização e barbárie estão presentes na viagem ao Sul, desta vez simbolizadas pela dicotomia razão/delírio.
Já o cineasta argentino Fernando Solanas narra o sentimento de pertencer a este espaço na música “Vuelvo al sur”, que compôs com Astor Piazzolla. Não por acaso, o filme de Solanas também se chama “Sur”. Nela, ouvimos:
Vuelvo al sur/ Como se vuelve siempre al amor/ Vuelvo a vos/ Con mi deseo, con mi temor/ Llego al sur/ Como un destino del corazón / Soy del sur/ Como los aires del bandoneón/ Sueño al sur/ Inmensa luna, cielo al revés/ Busco el sur/ El tiempo abierto y su después/ Quiero el sur/ Su buena gente, su dignidad/ Siento el sur/ Como tu cuerpo en la intimidad/ Vuelvo al sur/ Llego al sur/ Te quiero.

Também nos versos desta canção está presente a idéia de Sur, o que demonstra que este é um mito que permeia o imaginário gaucho/gaúcho. Solanas fala em Sur como “um destino do coração”, ou seja, um destino que não pode ser negado. A dicotomia agora é representada pela palavra coração (símbolo milenar da emoção, o oposto da razão). Mas há desejo e temor. Será o desejo de ceder ao instinto, o temor de perder a racionalidade? A morte violenta e a luta corajosa são destinos do coração. A entrega à paixão é um destino do coração. Tudo isso no território del Sur de tiempo abierto y su después. Mas que tempo é esse? Certamente, quem atravessar a Rivadavia saberá.

6. El Sur e o arsenal imaginário dos gaúchos
Modernamente, considera-se o mito como um problema de linguagem. Roland Barthes afirma que “tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso” (Barthes 1978: 131). Assim, o mito encontraria-se no nomear: tudo o que foi nomeado torna-se real, como a própria coisa. Nesse sentido, o mito literário reside nessa nomeação, nessa recriação. Criar um mito significa extrair da realidade a narrativa que, de modo não-lógico, enfrenta o problema da explicação da própria realidade, ou seja, o mito faz metáfora da realidade. (Samuel 2002: 26). E, nesse sentido, é inegável que a idéia de Sur faz metáfora dos dilemas culturais de toda uma região. Se um simples tema literário começa a ter valor mítico quando passa a expressar a constelação mental em que se reconhece um grupo social (Dabezies 1997:732), Sur é por excelência o espaço mítico dos gaúchos.
Em sua trajetória, além de espelhos e labirintos, Borges ajudou a construir esse espaço mítico que hoje abriga o arsenal imaginário dos gaúchos. Geograficamente, o Sur de Borges corresponderia à região do pampa e dos arrabaldes de Buenos Aires. Mas, enquanto concepção imaginária, o Sur habita almas para além das fronteiras argentinas. Entendendo como gaúchos (ou gauchos) os habitantes rurais e urbanos de parte do Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, esta é uma identidade que extrapola o território argentino.
Quer seja o mito um problema de linguagem ou um sistema de símbolos e de arquétipos, tema dinâmico que tende a se organizar em narrativa, podemos afirmar que Borges alcançou seu objetivo de juventude, pois trabalhou com os arquétipos do Prata em sua literatura, enriquecendo-os e renovando-os. E, na escolha de uma linguagem sem regionalismos para tratar dos temas nativos, universalizou o mito, compartilhando-os com a humanidade.

BIBLIOGRAFIA
Barrenechea, Ana María. La expresión de la irrealidad en la obra de Jorge Luis Borges y otros ensayos. Buenos Aires: Ediciones Del Cifrado, 2000.
Barthes, Roland. Mitologias. Tradução de Rita Buongermino e Pedro de Souza.
Rio de Janeiro: Difel, 1978.
Borges, Jorge Luis. El tamaño de mi esperanza. Madrid: Alianza, 2000
_________. Textos recobrados 1919-1929. Barcelona, Emecé, 1997.
_________. El escritor argentino y la tradición. In Obras Completas. Buenos Aires. Emecé, 1972.
________. O Aleph. Tradução de Flávio José Cardozo. São Paulo: Globo, 2001.
________. Ficciones. Buenos Aires: Emecé, 1995.
________. Prólogo. In Facundo. Buenos Aires: Emecé, 1999.
Dabezies, André. Mitos primitivos a mitos literários. In Dicionário de Mitos Literários. Tradução de Carlos Sussekind, Jorge Laclette, Maria Thereza Costa, Vera Whately. Rio de Janeiro: Editora UnB/ José Olympio, 1997.
Freud, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. In: Cinco Lições de Psicanálise. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. São Paulo: Abril, 1978.
Jung, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de Maria Luiza Appy et al. Petrópolis: Vozes, 2002.
Patai, Raphael. O Mito e o Homem Moderno. São Paulo: Cultrix, 1972.
Samuel. Rogel. Novo Manual de Teoria Literária. Petrópolis: Vozes, 2002.
Sarlo, Beatriz. Borges, un escritor en las orillas. Buenos Aires: Ariel, 1995.
Sarmiento, Domingo Faustino. Facundo: Civilización y Barbarie. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina, 1979.
___________. Facundo: Civilización y Barbarie. Medellín: Bedout, 1971.
Tedio, Guillermo. “Borges y “El Sur”: Entre gauchos y compadritos”. In: Espéculo, Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, 2000.

[1] Em diálogo com o escritor irlandês Seamus Heaney, Borges afirmou: “He leído a Jung con gran interés, pero sin convicción. En el mejor de los casos, fue un escritor imaginativo e inquisitivo”. Ver revista Nexus Cultural em http://www.nexos.com.mx/internos/saladelectura/borgesynabokov.htm
* Borges refere-se aos poemas “Santos Vega, o los mellizos de la flor”, de Hilario Ascasubi (1850) e “Santos Vega”, de Rafael Obligado (1917).
[2] Vitor Ramil criou o termo "estética do frio" para designar parte da cultura do sul do Rio Grande do Sul, diferenciando-a conceitualmente da cultura do Brasil “tropical”.
*** Este estudo foi publicado na revista Fragmentos especial sobre Borges. Florianópolis, 2006.


Idéias são matéria-prima na nova sociedade

"Sob o estímulo dos meios de comunicação de massa, podemos alienar-nos ao infinito: 12 horas como produtores indefesos e 12 horas como consumidores insaciáveis."
"Os povos latinos, ao invés de se americanizar, deveriam ajudar os norte-americanos a viver de modo mais equilibrado. Nunca como hoje, o mundo é dominado por um povo de desequilibrados, incapaz de viver de modo sadio e sensato."

Sociólogo italiano Domenico de Masi subverte noção de ócio e negócio

Por Marlova Aseff (publicado no jornal A Notícia em 2002)


Domenico de Masi é um simpático senhor de 62 anos. Seu último livro figura na lista dos mais vendidos no Brasil há cinco meses consecutivos, alcançando a respeitável marca de 35 mil exemplares. O motivo? Talvez suas idéias reflitam o que muitos estavam querendo ouvir há um bom tempo: o trabalho não precisa ser necessariamente uma obrigação tediosa e sacrificante, muito menos o único objetivo da vida de uma pessoa."A maioria se enche de trabalho 10 horas por dia, descuidando da família, do convívio social, do amor e da cultura, de acordo com o modelo de vida americano baseado na prioridade do dinheiro e do poder", critica o sociólogo italiano. Professor titular de sociologia da Universidade La Sapienza de Roma, De Masi estará em Florianópolis no dia 26 como convidado do Encontro das Redes Incubadoras da Região Sul. As entradas já estão esgotadas. Em solo catarinense, falará sobre sua visão de futuro "essencialmente otimista" e sobre o ócio criativo, conceito que criou depois de anos de estudos sobre criatividade. Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida com exclusividade para A Notícia.


A Notícia - Seu livro "Ócio Criativo" já está há 19 semanas na relação de livros mais vendidos do Brasil? O que está levando as pessoas a se sentirem atraídas por suas idéias e pelo livro?Domenico de Masi - Não sei e gostaria de sabê-lo. Posso tentar algumas hipóteses. Talvez minhas idéias correspondam a uma necessidade, sempre mais presente mas ainda não explorada: aquela de substituir a centralidade do trabalho pelo trabalho pela centralidade do trabalho pelo ócio. Aristóteles e toda a cultura grega sustentavam que a guerra existe em função da paz e a atividade, em decorrência do ócio. A sociedade industrial, ao invés, opôs o descanso ao trabalho: só é necessário repousar na medida em que isso sirva para recuperar as forças e para retomar o trabalho. A maioria dos executivos, dos trabalhadores na linha de produção, dos trabalhadores intelectuais se enche de trabalho 10 horas por dia, descuidando da família, do convívio social, do amor, da cultura, de acordo com o modelo de vida americano baseado na prioridade do dinheiro e do poder. Proponho um modelo de vida baseado na introspecção, na amizade, no amor, no lúdico e no convívio. Uma segunda hipótese é de que a forma dialogada do livro-entrevista dê comodidade ao leitor e o ajude a acompanhar o raciocínio sem se enfadar muito. Uma terceira hipótese é de que haja grande afinidade entre minhas idéias, meu tipo de sensibilidade e a cultura brasileira.
AN - Como você chegou ao conceito de ócio criativo e qual é seu real significado?
De Masi ­ Cheguei à formulação do conceito de ócio criativo, estudando a criatividade. Nos últimos 15 anos, fiz pesquisas sobre centenas de grupos criativos do passado e do presente e me dei conta de que a criatividade científico-tecnológica vinga também num ambiente tumultuado, dominado pela pressa e pelo eficientismo. A criatividade humanística, ao contrário, floresce sobretudo num clima que valoriza a calma, a experiência, o equilíbrio, a sobriedade. Na sociedade industrial (entre 1750 e 1950), prevalecia a atividade braçal e repetitiva, para a qual o ócio constituía uma pausa entre uma e outra fase de trabalho. Em nossa sociedade pós-industrial, predomina o trabalho intelectual. As atividades intelectuais são de diferentes gêneros e podem ser híbridas: o trabalho para produzir riqueza, o estudo para produzir conhecimento, o jogo para produzir alegria. Quando conseguimos desenvolver uma atividade que une trabalho, estudo e jogo, realizamos o que chamo de ócio criativo. Enquanto a família, a escola, a empresa, os meios de comunicação continuam a ensinar como se trabalha em escala industrial, nada nos ensinam sobre como praticar o ócio de modo criativo. Espero que nossa educação dê muito mais atenção ao ócio, de outro modo ele não se eleva ao nível criativo, tornando-se dissipativo.
AN - Uma grande parte da população mundial tem o mesmo problema: sente-se estressada por trabalhar durante muitas horas seguidas e pela necessidade de consumir. Segundo sua avaliação, quais são os limites para o consumo?
De Masi - Não há limites objetivos para o consumo. Sob o estímulo dos meios de comunicação de massa, podemos alienar-nos ao infinito: 12 horas como produtores indefesos e 12 horas como consumidores insaciáveis. O único limite pode vir da sabedoria, isto é, da força subjetiva de substituir a competição destrutiva pela emulação solidária e a aquisição de novas coisas desprovidas de sentido pela a atribuição de sentido às coisas que já temos.
AN - Você classifica freqüentemente que o trabalho é uma maldição, uma praga bíblica. Por que? É possível a sociedade existir sem que haja o trabalho?
De Masi - O homem sempre é ativo física e intelectualmente, do nascimento à morte, quando está acordado e quando dorme. Algumas atividades servem para produzir riqueza, outras servem para produzir conhecimento, outras servem para produzir beleza, outras para produzir violência, outras para produzir alegria. Por conveniência social, algumas dessas atividades são remuneradas e as chamam de trabalho; outras não são pagas e não as chamam de trabalho. Não pode existir uma sociedade sem trabalho, mas não há tampouco uma sociedade sem ócio. De resto, nas perspectivas de vida de um jovem de 20 anos, há 530 mil horas de existência e só 80 mil de trabalho.
AN - Sua concepção é que as pessoas precisam dedicar mais tempo para a família e/ou para o desenvolvimento de habilidades pessoais. Como isso é possível, considerando que a competição no trabalho cada vez mais é crescente?
De Masi - Como a expectativa média de vida aumentou muito, hoje o indivíduo já dedica ao trabalho apenas um décimo do total da própria vida e só um sétimo de sua fase adulta. Há cem anos, o trabalho representava a metade de todo o tempo de vida. A competição no trabalho aumenta, porque se difunde o modelo americano baseado na alienação e no delírio de onipotência. Tal modelo explora ao máximo as pessoas entre os 30 e 50 anos e depois as dispensa como máquinas obsoletas. Os trabalhadores acostumados até o dia da aposentadoria a classificar a inatividade como crime, são de repente forçados a habituar-se a considerá-la virtude. Esse é um modelo de vida que não aceito. Os povos latinos, ao invés de se americanizar, deveriam ajudar os norte-americanos a viver de modo mais equilibrado. Nunca como hoje, o mundo é dominado por um povo de desequilibrados, incapaz de viver de modo sadio e sensato. Basta ver a vida amorosa de Kennedy e de Clinton, para entender a que nível de neurose pode levar o modelo americano baseado na competição destrutiva e no utilitarismo.
"O progresso tecnológico e a globalização fazem com que seja necessário cada vez menos trabalho para produzir cada vez mais bens e serviços. Logo, a necessidade de trabalhadores diminuirá sempre mais."

AN - O que deve fazer uma empresa que pretende estimular a criatividade entre seus funcionários?
De Masi - Em meu entendimento, é necessário incrementar ao máximo o progresso tecnológico, de modo que se possa deixar para as máquinas todo o trabalho perigoso, nocivo, maçante e banal; preparar os trabalhadores para uma vida mais longa; abolir a idade para aposentadoria: todo o trabalhador deve ter o direito de trabalhar até quando quiser e até quando encontrar empregador; educar com igual atenção para o trabalho, para o estudo, para o jogo; desmistificar o trabalho, fazê-lo descer do trono em que o colocou a sociedade industrial e reduzi-lo a uma das tantas atividades de nossa vida; redistribuir o trabalho, a riqueza, o poder e o conhecimento; ter em toda a empresa e em todo o nível hierárquico número igual de trabalhadores e trabalhadoras; conferir papel central à ética e à estética; basear a dinâmica organizativa na emulação solidária, não na competição destrutiva; substituir o controle pela motivação e desestruturar o trabalho convencional com o trabalho a distância (teletrabalho).
AN - Suas idéias chegam a ser motivo de polêmica, críticas. Quem são os principais críticos e por quê?
De Masi - Alguns críticos "patronais" me perguntam: mas quem produzirá riqueza se todos ficam no ócio? Essa é a crítica mais estúpida e que menos aceito. Hoje, conseguimos produzir muito mais bens e mais serviços em muito menos tempo. Logo, o tempo poupado não deve ser convertido em novo trabalho. Ademais, o ócio, se consentimos em desenvolver novas idéias, é ele mesmo produtor de riqueza, porque as idéias são as verdadeiras matérias-primas da produção pós-industrial.
AN - O destino dos países em desenvolvimento é o de se especializar no trabalho convencional, enquanto os desenvolvidos realizam o intelectual? Qual é o papel dos países do Terceiro Mundo na sociedade pós-industrial?
De Masi - Hoje, o planeta está cada vez mais se dividindo em três tipos de países. O primeiro grupo abrange os países produtores de idéias através de suas universidades, de seus cientistas, de suas emissoras de televisão. O segundo grupo - ao qual pertence o Brasil - compreende os países produtores de bens e serviços, que utilizam sobretudo licenciamentos dos países pertencentes à primeira categoria. O terceiro mundo envolve os países que não produzem nem idéias nem bens, mas só fornecem mão-de-obra e matérias-primas. Esses países são condenados a consumir as idéias produzidas no primeiro mundo e os bens do segundo. Para pagar, são obrigados a ceder suas matérias-primas, suas bases militares e a submeter-se politicamente.
AN ­ Como pode ser mudada a concepção predominante de que o trabalho é uma obrigação?
De Masi - Na atual sociedade, o trabalho é uma obrigação, porque dele dependem o salário e a respeitabilidade social. Mas, por sorte, o papel do trabalho está se redimensionando cada vez mais: com o aumento do tempo livre, conta não só o trabalho que se faz, mas também a simpatia, a alegria, a disponibilidade, o erotismo, a solidariedade, o talento.
AN - Como você vê o problema do desemprego?
De Masi - O progresso tecnológico e a globalização fazem com que seja necessário cada vez menos trabalho para produzir cada vez mais bens e serviços. Logo, a necessidade de trabalhadores diminuirá sempre mais. Porém, crescerá, sobretudo no terceiro mundo e entre as mulheres, o número daqueles que avançarão a legítima pretensão de conseguir um trabalho remunerado. É preciso criar novos trabalhos, contanto que sejam verdadeiramente úteis. Mas, sobretudo, é necessário redistribuir o trabalho existente, de modo que todos possam participar. É absurdo que, na mesma família, o pai traballhe 12 horas por dia e o filho esteja completamente desocupado!
AN - Para encerrar: Quem tem mais chances de vencer a guerra entre os burocratas e os criativos?
De Masi - Os burocratas são mais numerosos, mais agressivos e corporativistas. Apesar disso, vencerão os criativos, porque, antes ou depois, todo o trabalho burocrático poderá ser delegado às máquinas, enquanto a atividade criativa deverá ser desenvolvida sempre e somente pelos homens dotados de criatividade.

"Todo o trabalho burocrático poderá ser delegado às máquinas, enquanto a atividade criativa deverá ser desenvolvida sempre e somente pelos homens dotados de criatividade."