domingo, novembro 20, 2005

A dor e a delícia da tradução


Como muitos de vocês sabem, estou fazendo doutorado na área de Teoria Literária - Teoria da Tradução. No momento, estou vivendo "a dor e a delícia" do processo de traduzir, que oscila entre sentimentos de prazer e de conflito. Para Walter Benjamin, a tradução está no meio do caminho entre a criação literária e a teoria. Quando se aproxima da criação, me dá mais prazer.
Abaixo, uma entrevista que fiz com o grande e já lendário tradutor Boris Schnaiderman. Foi publicada nos Cadernos de Cultura dos jornais Diário Catarinense e Zero Hora em 27/3/2004.

Principal intérprete da cultura russa no Brasil, Boris Schnaiderman diz que para se verter uma obra para outra língua é preciso coragem



Boris Schnaiderman é a prova viva do tanto que um homem pode contribuir para a cultura de um país. Reconhecido como o grande intérprete da cultura russa no Brasil, devemos a ele o privilégio de ler o melhor dessa literatura em traduções feitas diretamente do original (e não mais através de línguas intermediárias). Ensaísta produtivo e professor, foi o responsável pela criação do curso de língua e literatura russa da Universidade de São Paulo (USP), no qual participou da formação de uma geração de tradutores. Ajudou a divulgar entre nós poetas como Puchkin e Maiakóvski, cujos poemas traduziu em parceria com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Para ele, seu ofício é sinônimo de coragem e ousadia: “Sem ousadia não há bom tradutor”, diz.
Nascido na Ucrânia, no ano da revolução bolchevique, ainda criança ele aportou no Brasil. Hoje, chegando aos 87 anos, Schnaiderman continua em plena produção. Deve lançar em breve o livro Tradução, ato desmedido (editora Perspectiva) e está revisando sua tradução de O Jogador, de Dostoiévski, que será relançada com o título de Um jogador. Seu relato autobiográfico Guerra em surdina também terá nova edição este ano. Sua vida de trabalho intelectual foi reconhecida no ano passado pela Academia Brasileira de Letras com o recém-criado Prêmio de Tradução. Durante sua visita a Florianópolis, onde veio proferir a aula inaugural do curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), concedeu a seguinte entrevista:

Diário Catarinense - O senhor nasceu justamente no ano da revolução bolchevique, fato que afetou seu destino...
Boris Schneiderman - Sim, eu nasci em 1917 numa cidade pequena da Ucrânia. Pouco após a revolução, quando eu tinha mais ou menos um ano, meus pais me levaram para Odessa porque era o período das grandes matanças de judeus que ocorreram na Ucrânia. Vivi minha primeira infância em Odessa e vim para o Brasil aos oito anos com meus pais.

DC - Como o senhor avalia as conseqüências desse período para a cultura russa?
BS - Houve essa coisa horrível que foi a opressão, que se fez sentir alguns anos após a revolução. Nos anos imediatamente após a revolução, havia uma certa soltura, não havia tanta repressão. Claro que eles se preocupavam com atividades contra-revolucionárias, houve fuzilamentos. Um poeta importante como Nicolai Gumilióv foi fuzilado. Mas, de um modo geral, o clima não era tão opressivo como a partir de 1929-1930, com a ascensão de Stálin. Para a cultura, foi terrível. Era proibido, por exemplo, escrever um romance que não se enquadrasse nas normas da literatura do século 19. A poesia tinha que ser aquela mais tradicional... A prevenção contra as vanguardas já existia desde os primeiros tempos da revolução. Houve essa contradição de que os dirigentes tinham um gosto muito arcaico. Eram pessoas cultas, polidas, mas muito direcionadas para a política. Alguns, como o comissário de instrução pública, uma espécie de ministro da educação, era um homem muito culto e que no início, pelo menos, mostrou uma abertura muito grande para o desenvolvimento cultural, mesmo de correntes que eram contrárias ao que ele fazia. Depois é que as coisas foram piorando. Mas está errado pensar que não se produziu coisas de valor na época. Esses tempos eu fiz uma palestra em Fortaleza, e um escritor me perguntou como na Rússia foi possível que aquela grande literatura do século 19 simplesmente desaparecesse. Estava errada a opinião que ele tinha. Um escritor como Isaac Bábel, apesar de ter produzido pouco, é um escritor de primeira. Ernest Hemingway o admirava e dizia que sentia inveja da concisão de sua escrita. Logo Hemingway, que era tão direto, sempre apontado como modelo de escritor conciso.

DC - Quantas vezes o senhor retornou à Rússia?
BS - O primeiro retorno foi em 1965, já como professor da USP. Antes disso, era difícil de voltar porque eu era cidadão soviético (estava naturalizado brasileiro, mas tinha passaporte soviético). Nossa família havia saído legalmente, então eu era mais ou menos um renegado: alguém que tem passaporte e não se liga à Pátria. Mas depois de 1965 eu retornei várias vezes.

DC - E o senhor vê identidades entre a Rússia de hoje e o Brasil.
BS – Há em comum a má distribuição de renda, o subdesenvolvimento, enfim, as coisas piores.

DC – Mas é verdade que os russos também têm a “cultura do jeitinho”?
BS - É, têm sim. Nos anos que se seguiram à revolução, era típico: cada um costumava dar o seu “jeitinho”. Isso a gente pode ver na literatura da época. Acontece o seguinte: a literatura russa anterior a esse fechamento era forte. Está errado dizer que havia desaparecido totalmente. Era a época do Maiakóvski, do Boris Pasternak. Havia grandes escritores que estavam produzindo coisas boas. Mas o que me surpreendeu muito, foi que depois da Glasnost, apareceu tanta coisa, uma riqueza de textos. Foi incrível.

DC - É o que o senhor trata no livro de ensaios Os escombros e o mito, não?
BS: Sim, a finalidade desse livro é justamente toda essa cultura muito rica que ficou escondida, guardada nas gavetas. E era perigosíssimo. Há aquela frase famosa de
um poeta russo dizendo que a Rússia era um país onde a poesia tinha um peso muito grande, tanto que era o único lugar no qual se fuzilava por causa de um verso. Tanto é verdade que ele morreu vítima da repressão por causa de um poema.

DC - Dos grandes escritores russos que o senhor traduziu, como Tolstói, Tchekhov, Dostoiévski, Púchkin, Górki, etc, quais o que mais gosta?
BS - É difícil dizer porque eu só traduzo textos que me tocam de perto. Claro que há maiores e menores. Por exemplo, Górki eu não colocaria no mesmo plano de Tolstói e Dostoiévski. No entanto, tenho afinidade, gosto de muita coisa do Górki. Eu não saberia dizer se admiro mais Tolstói ou Dostoiévski. Eu não diria que um é maior do que o outro, é uma discussão meio boba.

DC - O senhor disse certa vez que é preciso coragem para traduzir Dostoiévski...
BS - Mas ao mesmo tempo é preciso ousar. Uma tarefa assim não deve assustar, deve estimular a pegar o texto e ir em frente, trabalhar. Se eu fizer um trabalho imperfeito, depois virá alguém que o fará melhor. Sem ousadia não há bom tradutor.

DC - Qual é o nível da literatura russa contemporânea?
BS - Não tenho condições de julgar. Eu conheço algumas obras bem interessantes. Recentemente tive uma surpresa com um romance que apareceu e que havia sido escrito em um período que não se podia publicar certas coisas. O romance se chama Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsipkin, e foi lançado recentemente pela Companhia das Letras.

DC - No que o senhor está trabalhando no momento?
BS - Preciso acabar de revisar uma tradução minha de Um jogador, de Dostoiévski. Eu prefiro “um jogador”e não “o jogador”, título que já se consagrou. O motivo eu vou explicar no prefácio ou em uma nota do livro. Mas estou mais envolvido neste momento em um livro sobre tradução, que vai se chamar Tradução, ato desmedido, e será lançado pela editora Perspectiva. Nesse livro, defendo a posição, que até anos atrás era considerada ousada demais, de que o tradutor na verdade é co-autor da obra na língua de chegada. De vez em quando também escrevo artigos.


DC - O senhor comentou de um dilema que já viveu como tradutor: o risco de a tradução ficar ora muito “endomingada”, ora muito “prosaica”. Como encontrar o tom certo?
BS - Aí é que está a arte. A tradução é uma arte! Não adianta traduzir uma obra que é solta, numa linguagem simples, e colocar adjetivos, torná-la mais solene.

DC - Como foi a sua experiência de traduzir junto aos irmãos Campos?
BS - Foi uma experiência muito rica, eu aprendi muito. Eu os conheci em 1961 quando eles foram à minha casa com o Décio Pignatari. Eu havia publicado um artigo sobre Maiakóvski e eles se interessaram. Nós nos reuníamos para traduzir, eu fazia a primeira tradução e sugeria alguns procedimentos. Em cima disso, eles trabalhavam. Depois de pronto o poema, eles me mostravam. Isso na maioria dos casos, pois eles também traduziam do francês e do inglês e me davam para eu confrontar com o texto em russo.

DC - Há algum autor que o senhor não traduziu ainda, mas gostaria?
BS - Sim, vários. Eu citaria Daniel Kharms, que produziu uma obra de literatura do absurdo. Inclusive ele tem uma peça de teatro do absurdo. Ele começou a aparecer na segunda metade da década de 20. Era conhecido como autor de livros para crianças, de histórias estapafúrdias que as crianças gostam e que eram o seu ganha-pão. Depois, em seu diário, ele confessou que detestava crianças. Foi um precursor de Samuel Beckett e de Ioneso. Na segunda metade da década de 20, havia um grupo de Leningrado que fazia esse tipo de literatura. Era o grupo Oberiúti. E Kharms era, para mim, o mais importante destes autores que narravam o absurdo que surgia naturalmente da vida russa.
fim de texto

Falando em tradução...

Pessoal: já que postei a entrevista com o Schnaiderman, agora publico um texto que ele fez sobre o livro Memória de Tradutora, do qual participei como entrevistadora e editora do texto. Está excelente, não percam! A resenha fou publicada em 16 de Outubro de 2005.

Paradoxos da profissão impossível

Memória de Tradutora, de Rosa Freire d'Aguiar, reafirma bases que norteiam este complexo compromisso literário

Boris Schnaiderman
Especial para o Estado

A tradução é uma atividade paradoxal por excelência. Aliás, como afirmou José Ortega y Gasset num estudo magistral, Esplendor y Miseria de la Traducción (Obras, Madrid, Espasa-Calpe, 1943), ela é, em princípio, impossível. Pois, se lemos num texto brasileiro a palavra "floresta", logo pensamos na floresta amazônica, num mundo de vegetação luxuriante e diversificada, ou nas queimadas que a devastam atualmente, enquanto um alemão, quando lê wald, vê mentalmente uma floresta européia, regular e uniforme, com as árvores mais agrupadas por espécies. Mas, impossível em princípio, a tradução tem de ser feita. E Ortega y Gasset afirma então que tudo o que o homem realiza de grande situa-se no campo do impossível. Este e outros paradoxos vêm logo à lembrança com a leitura de um livro notável, Memória de Tradutora, com Rosa Freire d'Aguiar, da coleção Memórias do Livro, publicado pela editora Escritório do Livro, de Florianópolis. O volume contém uma entrevista da tradutora com Dorothée de Bruchard e Marlova Aseff (sendo desta última também a edição do texto), além de um prefácio de Clélia Piza e do trabalho da entrevistada O Compromisso da Tradução, apresentado como aula inaugural do Mestrado em Estudos de Tradução, proferida em agosto de 2004 na Universidade Federal de Santa Catarina. Sem dúvida, a simples existência deste livro constitui outro paradoxo. Muito bem feito materialmente, bem acabado, e contendo matéria tão importante para todos os que se interessam por esse tema, ele dificilmente será encontrado em livrarias do Rio ou de São Paulo. Trata-se de um velho problema: obras de grande relevância aparecem editadas longe dos centros maiores e acabam tendo uma circulação geograficamente limitada, quando o justo seria circularem pelo território nacional. Sim, é um velho problema, sobre o qual nunca é demais insistir. Rosa Freire d'Aguiar teve atuação importante no jornalismo, mas, tendo residido alguns anos em Paris, passou a dedicar-se a partir de certo momento à tradução. Nessa atividade, alcançou mestria inegável e o vulto de sua produção chega a ser quase um enigma, dado o nível atingido. Pois, em pouco mais de 15 anos, chegou a traduzir mais de 60 livros, alguns bem volumosos. Ao mesmo tempo, ela dá conta das pesquisas trabalhosas para resolver bem os seus problemas de tradutora. Chega a ser impressionante o relato que faz de seus encontros com o buquinista André Bernot, fanático pela obra de Céline, e que tentou vender-lhe os Panfletos desse autor, "delirantemente anti-semitas, a ponto de pregar o ódio racial e a morte dos judeus, e que valeram a sua desgraça para o resto da vida e estão até hoje proibidos". Aqui, chegamos certamente a uma contradição dolorosa. Mais uma vez em princípio, para se traduzir bem um autor, é preciso identificar-se com o original, o texto traduzido é como que a expressão de uma segunda natureza do tradutor. Mas, ao mesmo tempo, o autor da obra é um outro, eu não posso encampar as suas idiossincrasias, os seus rancores e preconceitos. Tive que lidar com este problema desde a minha primeira tradução de Dostoievski. Não há como aceitar o seu chauvinismo grão-russo, o seu anti-semitismo e a sua prevenção contra os poloneses. E, ao mesmo tempo, tenho que dá-lo, na língua de chegada, em todo o seu furor e desvario. Afinal, a literatura não pode ser reduzida à amenidade dos jogos florais. Por conseguinte, em lugar de uma simples identificação, acaba-se tendo uma relação de amor e ódio. Chega-se, até, a uma nova categoria: a tradução raivosa, isto é, aquela que se faz com raiva do autor. Rosa Freire d'Aguiar lidou com este problema em toda a sua pungência. Fascinada por Céline, dando o melhor de si para transmiti-lo numa linguagem adequada em português, realizando para este fim giros de linguagem incríveis, afirma porém: "Céline é uma mistura de gênio e de celerado, mas, sobretudo, um homem de sensibilidade doentia." Diz também: "Ninguém desculpa o anti-semitismo de Céline, mas meio século depois de sua morte já não se pode invocar automaticamente esse sentimento para rejeitar sua obra in totum." Tudo verdade, não há dúvida. Mas como dói! De um jeito ou de outro, no entanto, ela realizou verdadeira proeza. Que o confirmem os que já leram as suas traduções dos romances de Céline Viagem ao Fim da Noite e De Castelo em Castelo (ambos editados pela Companhia das Letras). Aliás, em relação a este último, chega a exclamar: "Foi o meu Everest!" Escreve: "O tradutor é um obcecado." E esta obsessão sente-se no decorrer de todo o livro-entrevista. Para ela, o tradutor é, sobretudo, um indivíduo que duvida e põe em questão tudo o que realiza. Enfim, sente-se que ela nos transmite neste livro uma elevada postura ética, uma dedicação integral à sua tarefa. Isto pode ser confirmado, por exemplo, pelo apêndice à sua tradução do romance De Castelo em Castelo. (Romance mesmo? A tendência atual à diluição das fronteiras entre os gêneros permite talvez chamá-lo assim.) Francamente, um leitor que não esteja bem a par do ambiente na França durante a Segunda Guerra Mundial e pouco depois não poderá orientar-se no livro sem esta ajuda da tradutora. Algumas de suas formulações resultam de um prolongado convívio com os textos traduzidos. Veja-se, por exemplo, o que diz sobre Viagem ao Fim da Noite. Ela o julgava impossível de traduzir, até se dar conta do seguinte: seu texto, "mais que língua popular, é língua oral, ou forma oral da língua". E assim ela o traduziu, incorporando à tradução a nossa oralidade. Em certo momento afirma: "Sou uma prática e não uma teórica da tradução." Ora, todo tradutor que escreve com inteligência e conhecimento de causa sobre o seu trabalho acaba trazendo uma contribuição teórica. E isso pode ser constatado no decorrer de todo este livro. Finalmente, já que estamos tratando dos paradoxos inerentes à tradução, lembremos o que ela diz com referência à compensação que o tradutor recebe geralmente pelo seu trabalho: "Em 2002, uma pesquisa feita na Espanha sobre os tradutores mostrou que essa é a profissão mais mal paga do mundo, levando-se em conta o trabalho exigido deles. O tradutor é um profissional altamente qualificado, tem de manejar à perfeição, no mínimo, dois idiomas, acumular os mais diversos conhecimentos. (...)Tanto trabalho em troca de quê? Às vezes tenho a impressão de praticar uma atividade clandestina: o reconhecimento intelectual e social do tradutor, embora crescente, ainda é modesto: é raríssimo que alguém, já não digo elogie, mas comente o seu trabalho. (...) A grande incógnita é por que gente tão preparada escolhe se dedicar à tradução literária, e não a atividades mais bem remuneradas. Não tenho resposta. No máximo uma pista." Se tudo isto é mais do que verdade, reconheçamos que, desta vez, com o seu instigante livro, Rosa Freire d'Aguiar merece não apenas comentário, mas uma verdadeira discussão, tal a importância dos tópicos por ela abordados.

Boris Schnaiderman é tradutor, escritor e crítico literário

sábado, novembro 12, 2005

Por uma poesia liberta do “eu” (entrevista com Paulo Henriques Britto)

Tradutor de Byron e Elizabeth Bishop, o poeta carioca Paulo Henriques Britto fala abaixo sobre as formas e o retorno ao sublime. Esta entrevista ele me concedeu mais ou menos um ano antes de receber o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2004

O carioca Paulo Henriques Britto, 52, dedica seu tempo à tradução e à poesia. Considerado um dos melhores tradutores do inglês em atividade no Brasil, já traduziu mais de uma centena de livros, entre eles, grande parte da obra da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop, num projeto que durou seis anos. Como poeta, sua produção é pequena, porém esmerada. São quatro livros nos quais firma-se com uma poesia liberta do “eu”, voltada para as coisas do mundo. Herdeiro do modernismo, paradoxalmente, valoriza a forma. “O poema para mim sempre foi algo mais sonoro do que visual, então eu naturalmente caminhei para o lado das formas fixas”, explica Britto, que também atua como professor na pós-graduação em lingüística da PUC-RJ. Ele esteve em Florianópolis ministrando um curso de tradução de poesia para os alunos da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesta entrevista, ele fala do atual momento da poesia e da prosa brasileiras e dos ofícios de poeta, tradutor e professor.

Pergunta - Você e alguns outros poetas brasileiros estão escrevendo poesia não mais em verso livre, mas buscando formas fixas. Explique sua escolha:

Paulo Henriques Britto - Há vários poetas da minha geração que estão trabalhando com formas tradicionais. De um lado é uma certa tendência e, de outro lado, se você analisar, verá que cada caso é um caso. O que há de geral nisso é o seguinte: o verso livre foi importantíssimo como fator de liberação no modernismo. Depois, houve o refluxo, que foi a geração de 45, e nova reação contra o neoparnasianismo da geração de 45, que foi a geração da poesia marginal, na qual o verso livre foi da maior importância, uma volta a Oswald de Andrade. Eu não participei do movimento, mas são pessoas da minha geração. Agora, de novo, como uma espécie de reação a esse excessivo informalismo, os poetas estão voltando a trabalhar com as formas. Então, de um lado, é uma tendência geral. Mas quando você vai comparar os poetas que estão trabalhando com formas fixas, verá que cada um foi levado a isso por um motivo diferente. Há uma corrente literariamente e esteticamente conservadora, na qual a forma fixa é uma maneira de enobrecer a poesia e que tem o discurso do sublime. O Ítalo Moriconi tem um artigo interessante sobre a volta do sublime. Os três casos mais típicos disso seriam o Ivan Junqueira, Bruno Tolentino, esteticamente o mais conservador, e o Alexei Bueno. Esse último é um caso mais problemático, pois também tem essa volta a uma dicção mais nobre, mas ao mesmo tempo tem uma produção importante em verso livre. Então, nesse primeiro grupo, a volta a forma fixa é uma rejeição ao modernismo.

Pergunta - E no seu caso?

Britto - Eu e Glauco Matoso, por exemplo, não somos antimodernistas. Nós dois chegamos às formas fixas por motivos completamente diferentes. O Matoso é de uma tendência fortemente construtivista, e do construtivismo para a forma fixa é um pulo. Aí ele ficou cego. Ele me disse que, como cego, a melhor maneira de decorar um poema é a forma do soneto. Ele escreveu mais de mil sonetos, uma produção imensa. Então juntou-se a esse lado construtivista a questão da cegueira. O meu caso é completamente diferente, vem de longa data. Eu comecei a escrever poesia mais a sério no final da adolescência, no final dos anos 60, em um momento em que tinham muita força no meio poético as tendências construtivistas. Havia os concretos, a poesia práxis, o poema-processo. E nessa época eu estava lendo freneticamente Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira e os poetas de língua inglesa. Eu li mais poesia de língua inglesa do que de língua portuguesa durante boa parte da minha vida. E os poetas que eu lia mais, produziam muito em formas fixas. Por mais que eu admirasse Álvaro de Campos, Whitman, que foi um poeta que eu li muito, eu tinha uma atração muito forte pelas formas fixas, e essa atração não tinha nada a ver com uma volta ao sublime. Nada disso. Eu sentia uma certa necessidade de uma disciplina, mental até. Muita gente precisava disso, mas as pessoas encontravam essa disciplina no concretismo. Eu nunca me interessei muito pelo lado visual. O poema para mim sempre foi algo mais sonoro do que visual. Então eu naturalmente caminhei para o lado das formas fixas. Mas eu sempre me mantive muito próximo de uma concepção de poesia modernista, alguma coisa de dessublimização, de enfatizar o cotidiano, um certo elogio do “pé-no-chão”, do concreto, do real. Por isso, no meu caso, o sublime não tem nada a ver com o uso de formas fixas.

Pergunta - Você recebeu alguns prêmios. Você considera os prêmios e os concursos importantes para fomentar a criação literária?

Britto - Eu recebi um prêmio de tradução e outro de poesia. Essas coisas são muito boas, veja o caso dos Estados Unidos, onde há uma pluralidade imensa de prêmios literários. Os grandes prêmios, como o Pulitzer, são poucos, mas há muitos prêmios pequenos que permitem que você viva de seis meses a um ano. Esses prêmios têm a vantagem de permitir que a pessoa se dedique à poesia mesmo. Então, o que ocorre nos Estados Unidos é que se você é um poeta relativamente talentoso, você fica sendo escritor em residência numa faculdade, dá um curso de versificação poética em outra, recebe um prêmio que te segura por um ano, tempo para você fechar um livro, se dedicar só à escrita. Isso permite uma certa profissionalização do escritor ou do poeta. Isso é mais importante para o poeta do que para os outros escritores porque o livro do poeta não vai vender nunca. O romancista não só vende mais, como também pode eventualmente vender um livro para o cinema, para a televisão. O produto do poeta é absolutamente sem valor econômico. No Brasil, isso não é viável ainda, mas esses prêmios que estão surgindo agora são um passo no caminho correto, no sentido de que não adianta você ter apenas um prêmio de US$ 1 milhão, é preciso ter vários prêmios menores.

Pergunta – Fale um pouco da experiência de traduzir e mergulhar na vida de Elizabeth Bishop.

Britto – Eu traduzi a sério, mesmo três poetas: Wallace Stevens, Byron e Elizabeth Bishop. Foram os três projetos de tradução de poesia em que eu fui mais fundo. E dos três, o que eu fui mais fundo foi o projeto da Bishop, porque eu não apenas fiz uma antologia pegando quase metade do corpus da poesia dela, como também traduzi a prosa e as cartas dela. Foi uma coisa que eu nunca tinha feito em minha vida, um projeto de pesquisa sério. Quando eu percebi, estava me tornando um entendido em Elizabeth Bishop. Fiquei mais ou menos seis anos imerso nesse projeto.

Pergunta - E quanto ao Byron?

Britto – Com Byron foi diferente. Eu traduzi apenas um poema dele, um poema longo, mas que também me ocupou durante anos e me obrigou a ler a obra toda dele. Foi também muito interessante. Mas foi uma iniciativa minha, que fiz nas horas vagas. No caso da Bishop, foi interessante porque eu fui remunerado. A editora comprou o pacote da obra completa dela para lançar no Brasil as cartas, a prosa e uma seleção das poesias dela.

Pergunta - Você é tradutor exclusivo da Companhia das Letras?

Britto – Não, sou free-lancer, desde que a editora abriu em 1986. O primeiro livro de sucesso deles fui eu quem traduziu. Temos uma relação muito boa, mas de vez em quando faço um livro para outra editora, às vezes traduzo livros brasileiros para serem editados nos Estados Unidos. Vai sair agora a minha tradução de William Faulkner, de O som e a fúria, que fiz para a Cosac & Naify.

Pergunta – Você assimilou alguma característica da poesia de Byron e de Bishop em sua criação?

Britto – Esses poetas em que eu mergulhei, todos deixaram uma certa marca. O Wallace Stevens foi talvez o que deixou marcas mais fundas porque eu o li quando ainda estava em formação. Descobri a poesia dele quando eu estava com 23, 24 anos e estava escrevendo os poemas que saíram no meu primeiro livro, de 1982. Dele peguei duas coisas importantes: um certo olhar filosófico, uma poesia muito pensante, de caráter introspectivo, e uma coisa meio objetiva, liberta do eu, porque o Fernando Pessoa, que foi minha leitura básica, reforçou um lado muito autocentrado, algo que todo adolescente tem, de esmiuçar o eu. O que eu gostei do Stevens é que ele voltava seu olhar filosófico para outras coisas, para o mundo, para a arte, para os objetos. Para mim, isso foi muito bom porque me obrigou a sair um pouco do “eu”.

Pergunta - Sua poesia fala do mundo, das coisas...

Britto– Sim, e nisso o Byron foi fundamental para mim. Com ele aprendi duas coisas: uma foi lidar com formas fixas de uma maneira mais disciplinada, a outra tem a ver com a sua personalidade voltada para o “aqui e agora”. O poema dele que traduzi tem um fiapo de história, uma bobagem, mas cheia de digressões, que são o mais interessante. Ele fala mal da Itália, da Inglaterra, dos amigos, dos inimigos. E essa coisa meio superficial e dispersiva dele foi boa para me puxar para a realidade. Por outro lado, a Bishop eu traduzi quando já estava com meu estilo poético já mais ou menos definido, então o impacto da obra dela na minha poesia foi menor, mas ela trabalha muito bem com a forma e reforçou isso em mim.

Pergunta – Em teu trabalho como tradutor, você se preocupa em influenciar o ambiente cultural?

Britto – Uma das coisas que me levaram a traduzir o Byron foi a idéia de que a poesia brasileira estava precisando de um banho de objetividade. Eu não agüentava mais essa coisa de poema sobre o poema, poema sobre a leitura, sobre a impossibilidade de escrever poemas. Essas coisas cansam, caem numa certa esterilidade. Eu fiquei impressionado com o fato de o Byron fazer poesia e estar ligado no mundo. Isso me interessava na medida em que a poesia estava se descolando muito do resto do mundo.

Pergunta – Enquanto professor e ensaísta de tradução, percebe-se sua crítica às teorias pós-modernas, em especial, à desconstrução.

Britto –Eu não me considero de modo algum um teórico da tradução. Não tenho grande interesse por teoria da tradução, meu interesse é pela prática, ensino e avaliação de traduções. Eu acabei sendo levado a ler a refletir sobre aspectos teóricos e me interessou o fato de que no Brasil, num determinado momento, estavam tendo grande impacto nos meios acadêmicos teorias que à primeira vista pareciam apontar para uma completa aporia, para um beco sem saída para a prática da tradução. Eu me convenci de que essas teorias levavam a um impasse completo. Então tenho tematizado sobre esse divórcio crescente entre a prática e a teoria da tradução. Como você vê, tem uma certa lógica nas minhas preocupações. Já há algo de bizantino em discutir questões teóricas que vêm do tempo de Cícero; mas pior que não chegar a conclusão nenhuma é tentar provar por A mais B que não se pode chegar a conclusão nenhuma, que estamos irremediavelmente presos à nossa própria subjetividade, que não se pode dizer nada sobre nada; isso me parecia uma coisa bastante prejudicial. Minha formação é muito anglo-saxônica, logicista, tenho uma preocupação grande com a realidade. Para mim, a função da teoria deve ser esclarecer, orientar intervenções sobre a realidade. Daí essa minha incursão pela teoria, que está se tornando algo mais profundo na medida em que agora estou trabalhando em um projeto de pós-graduação de tradução. Isso me levou de novo a refazer meu compromisso com uma visão muito terra-a-terra. Para mim, a teoria da tradução deve servir acima de tudo para fundamentar a avaliação de traduções, critérios para julgar e ensinar melhor a prática de tradução.

Pergunta - Fale um pouco sobre o seu método de avaliação de tradução de poesia.

Britto – É algo que estou desenvolvendo agora. Não é nada de revolucionário, é uma coisa bastante prática: tentar fazer uma análise do que você acha que são os elementos relevantes em determinado poema, atribuir um peso relativo a eles, determinando o que é essencial e o que não é tão importante. Na hora de traduzir, deve-se tentar recriar em português aqueles elementos que pareceram, à luz da análise, os mais relevantes. No mais, é uma prática em que entra muito bom-senso, muita lição de recriação de forma que eu aprendi com as traduções dos irmãos Campos, que foram a “universidade” de tradução que eu fiz. Eu não sou formado em tradução, minha formação é em lingüística, mas aprendi muito lendo as traduções e os paratextos principalmente do Augusto de Campos. Resumindo, estou tentando encontrar parâmetros que nos ajudem a dizer que a tradução A de determinado poema é melhor do que a tradução B.

Pergunta - E o que você busca quando traduz prosa?

Britto – Eu busco todas aquelas coisas que tradicionalmente todos os tradutores buscam, por mais que os teóricos esperneiem. Busco uma tradução fiel ao original, busco recriar em português os efeitos estilísticos do original e tento, na medida do possível, me tornar transparente ou invisível, colocando o mínimo de mim nos livros que traduzo. O lugar para eu me colocar como tradutor é o paratexto, a introdução, as notas, o posfácio. E o lugar para eu me afirmar como escritor é a minha poesia. No momento em que estou traduzindo, estou interessado em recriar em português, da melhor maneira possível, o que eu acho que sejam os valores estéticos do original. É a mesma coisa que eu faço na tradução de poesia. A única vantagem de trabalhar com poesia é que tudo é muito concentrado. Num textinho de dez ou quinze versos, os problemas são muito mais críticos. O texto poético tem inúmeros níveis, mais do que a prosa mais refinada. Mas tudo que estou propondo para a avaliação de poesia pode, mutatis mutandis, ser aplicado na prosa.

Pergunta – Como você avalia o atual momento literário brasileiro?

Britto - Acho que estamos num momento poético muito fértil, temos muitos nomes bons na poesia. Há também muitos autores ótimos de ficção. Temos uma nova geração de escritores bastante interessantes. Pessoas na faixa dos 40 anos que são escritores de primeira qualidade, como Rubens Figueiredo, Milton Hatoum e Bernardo Carvalho, cujos trabalhos costumo acompanhar. Em poesia, poderia citar no Rio de Janeiro o Carlito Azevedo e a Cláudia Roquette-Pinto; de uma geração um pouco mais velha, há o Armando Freitas Filho. Há também muita gente boa em São Paulo, como o Nelson Ascher, que também é um excelente tradutor de poesia. No Nordeste há vários bons poetas, como Ruy Espinheira Filho e Adriano Espínola. São os nomes que me ocorrem agora, mas eu poderia citar muitos outros. Enfim, há um nível muito bom de produção poética no Brasil.

(Publicado no Diário Catarinense em 3/4/2004, páginas 14 e 15 do DC Cultura)

sexta-feira, outubro 21, 2005

Voltando para casa

O título pode parecer paradoxal, já que estou passando um ano fora do Brasil e ainda faltam nove meses para retornar. Calma, vou me explicar... Conversando com meus companheiros de piso, há algumas semanas, eu disse a eles que a minha casa estava onde o Ricardo estava. Nem preciso dizer que o Ricardo achou bonito, ficou todo contente... E eu comecei a pensar sobre como estava realmente me sentindo “inteira” aqui, não me sentia presa ao Brasil ou às pessoas que lá ficaram. Ao contrário, lembro muito dos meus amigos, pais e parentes, mas de uma forma alegre, como se estivessem comigo (e eles estão).
Hoje tirei a carta “ O Xale” nas Cartas do Caminho Sagrado, que é, para quem não sabe, um oráculo indígena. Essa carta fala que “se o xale caiu em seus ombros, você está sendo convidado a voltar para casa, ou seja, para o encanto e a magia com que conviveu no passado, ou então, para um novo estado de euforia e felicidade”. É assim que estou me sentindo...Voltando a um estado de equilíbrio e criatividade que não sentia há muiiiiiito tempo.
Quando viemos para Barcelona, muitos estranharam nosso desapego em relação à nossa casa, em deixá-la com estranhos, mas isso nunca foi uma verdade para nós.
Os povos nômades e os viajantes sabem que o lar não está em uma construção....

quarta-feira, setembro 21, 2005

O tango existencial de Juan Carlos Onetti

Uma literatura sórdida, na qual a degeneração humana é como uma fratura exposta: assim é o universo ficcional do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994).
Onetti faz parte da geração de 45, intelectuais de Montevidéu que publicavam contos e relatos curtos com temas urbanos e cosmopolitas. Em 1939, lançou El pozo, romance que, para Mario Vargas Llosa, foi responsável pelo ingresso da ficção latino-americana na contemporaneidade. Segundo o crítico literário uruguaio Pablo Rocca, esse foi um relato fetiche para a nova geração de escritores de então, “um texto chave da modernidade narrativa, da origem de uma prática estética, assinalando a fronteira entre duas épocas”. No mesmo ano em que publicou El pozo, Onetti assumiu o cargo de secretário de redação do lendário semanário uruguaio Marcha, no qual escreveu uma série de artigos atacando a literatura realista de orientação rural, abrindo espaço para o urbano na ficção do continente.
Ao longo de 60 anos atuando como escritor, compôs “um grande tango existencial”, conforme definição inspirada do colega e conterrâneo Mario Benedetti. Seu mundo ficcional é habitado por personagens solitários, fracassados e, muitas vezes, neuróticos. São narrativas entre quatro paredes – no interior de cômodos, cabarés ou escritórios. Quando as personagens saem para o mundo externo, é quase sempre na penumbra indefinida da noite. Tanto os ambientes como a linguagem costumam instalar um clima de pesadelo, como ocorre em La vida breve (1950). Nesse romance, aparece a cidade de Santa María, território imaginário no qual ele viria a ambientar várias de suas histórias. Onetti confessou certa vez que Santa María era fruto da nostalgia que sentia de Montevidéu, terra natal que teve de abandonar em 1974, depois de ser preso pela ditadura militar instalada no Uruguai em 1973.
A prosa turva e pastosa, como a classificou Anderson Imbert em sua História da Literatura Hispano-americana, deu corpo a dezenas de romances, novelas e contos. Em 1979, vivendo no exílio na Espanha, publicou Dejemos hablar el viento, livro que o consagrou perante a crítica européia e cuja repercussão culminou, em 1980, na obtenção do Cervantes, o mais importante prêmio literário da língua espanhola. Mesmo com o fim da ditadura no Uruguai, o exílio em Madri prolongou-se voluntariamente até sua morte, em 1994.

Muitos textos de Onetti estão online:

Link para o conto "Regreso al sur"
http://www.borris-mayer.net/onetti/onetti_regreso.html

E para El pozo
http://www.borris-mayer.net/onetti/onetti_elpozo01.html

* Este texto traz fragmentos de uma matéria que publiquei DC/ Cultura em 2004. Tirei o factual e deixei algumas apreciações sobre a obra de Onetti.

segunda-feira, setembro 19, 2005

Caldwell, Nietzsche e Espinosa na guinada interpretativa de Dom Casmurro

1. Quem diz o quê para quem

Quero defender que o procedimento de Friedrich Nietzsche acerca da interpretação, exposto na primeira dissertação de Genealogia da Moral, foi o ponto-de-partida para Helen Caldwell marcar seu gol enquanto crítica literária. Lembrando o título de um dos primeiros romances de Machado de Assis, parece-me que o pensamento genealógico de Nietzsche e a leitura inovadora de Dom Casmurro feita por Caldwell no início dos anos 60 são como “a mão e a luva”. Explico. Como bem sabemos, e a própria Caldwell explicita em seu livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis[1], praticamente três gerações de críticos anteriores a esse estudo consideraram Dom Casmurro uma história de traição na qual Bento Santiago era a vítima da dissimulada Capitu, mulher, sem dúvida alguma, culpada de adultério. Um exemplo de como os críticos costumavam interpretar Dom Casmurro é o seguinte trecho de 1917:

Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha, Capitolina – Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre, consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em direito e casa-se com a companheira de infância. Capitu engana-o com o seu melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e quase mau.[2]

Dom Casmurro foi lançado em 1900; Caldwell publicou sua tese em 1960. Durante exatas seis décadas, nenhum crítico ousou questionar a palavra do narrador, no caso, Bento Santiago. A pergunta é: como Caldwell inverteu o jogo, abrindo essa nova via interpretativa? Lembremo-nos de Nietzsche, quando explica a origem das palavras “bom” e “mau”, noção que desvela que a interpretação deve sempre levar em contaquem diz o quê, para quem, que posição ocupa e o que pretende com essa fala[3]. Ora, mas não foi exatamente esse o ponto de vista inovador de Caldwell no estudo de Dom Casmurro? Até então, os críticos não haviam se feito essas questões. Por meio delas, Caldwell abriu novas perspectivas de leitura para o romance.

Outro crítico machadiano, Roberto Schwarz, aponta três possíveis leituras sucessivas que a obra pode suscitar, sendo que devemos a última ao olhar de Caldwell. São elas:

Romanesca, onde acompanhamos a formação e decomposição de um amor; outra, de ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher.[4]

É interessante ressaltar que a partir da interpretação de Caldwell, surgem novas importantes perspectivas de leitura do romance, como as dos críticos Roberto Schwarz e John Gledson.[5] O importante é que, com Caldwell, o leitor tomou consciência de que a própria história do suposto adultério foi interpretada primeiramente pelo narrador, uma noção tipicamente nietzschiana.

Bento Santiago, o representante da classe dos senhores de escravos, conta-nos sua história para fazer-nos partilhar de sua crença que, de fato, Capitu (a menina pobre) o enganara, e que esse fato o transformou numa pessoa “fria”. Caldwell coloca o narrador sob suspeição, inaugurando o “paradigma do pé atrás”, para citar as palavras de Abel Baptista. Depois dessa interpretação, já não podemos mais confiar no narrador, pois ele pode estar encobrindo interesses particulares ou nefastos. Ou melhor, os interesses vinculados à posição que ocupa. Embora não existam provas concretas dessa traição, devemos acreditar em Bento, uma personagem extremamente ciumenta? Mas se é assim, por que demorou tanto tempo para que essa leitura fosse levada a cabo? Para Gledson, uma das explicações é a de que os narradores em primeira pessoa criados por Machado

(...) foram intencionalmente concebidos para agradar o leitor, aliciá-lo no sentido de aceitar o ponto de vista do narrador. Concordamos com eles porque compartilhamos suas atitudes – é por isso que a (possível) inocência de Capitu levou tanto tempo para ser descoberta e, talvez, também por isso, foi descoberta por uma mulher.[6]

Schwarz também destaca a importância do fato de Caldwell ser estrangeira, mulher e criada em uma cultura protestante. O leitor e os críticos brasileiros estariam tão impregnados com a cultura católica e os preconceitos de classe locais que se deixaram levar pela palavra do narrador. Ele sugere que “se a reviravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque este se deixa seduzir pelo prestígio poético e social da figura que está com a palavra”.[7]

Por isso, acredito que o procedimento nietzschiano está fortemente presente na guinada interpretativa de Dom Casmurro, pois a proposição-chave de Caldwell foi perguntar: “quem está com a palavra, afinal?”. Ela apontou a força ativa ou dominante do texto (Bento Santiago) e a força reativa ou dominada (Capitu). A partir dessa identificação, tomou para si a tarefa de inverter essas posições. No entanto, ela desvirtua-se da filologia rigorosa apregoada por Nietzsche quando se empenha em provar que a intenção primeira de Machado de Assis era que entendêssemos Bento como um ser movido pelo delírio do ciúme, já que o escritor teria baseado-se em Otelo para escrever sua história, e que, por tabela, Capitu é tão inocente como assim o era a Desdêmona de Shakespeare. O fato é que não é possível chegar a uma conclusão sobre o adultério de Capitu. E nisso peca Caldwell em sua crítica: tentando inocentar Capitu a todo o custo, incorre no erro de querer encontrar uma verdade que não está no texto. Sob o viés da filologia rigorosa nietzschiana, a interpretação de Caldwell é válida por abrir uma nova perspectiva de interpretação, mas não quando tenta desvendar uma verdade original do texto.

2. Leitura ruminante e interpretação

Uma curiosidade, ou melhor, uma identidade inusitada entre Nietzsche e Machado de Assis é o conceito de leitura ruminante. No capítulo 55 de Esaú e Jacó, livro escrito logo após Dom Casmurro, Machado fala que “o leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida”.

Mas Machado também fala da necessidade de o leitor preencher lacunas, o que aponta para as várias possibilidades de interpretação, já que cada um poderia preencher tais lacunas como grande liberdade. Essa concepção machadiana está em Dom Casmurro, quando o narrador alega ter “memória fraca” para assim desculpar-se das omissões: “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. (...) É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas”.[5]

3. Uma aproximação ao método de Espinosa

Outra das formas pelas quais Caldwell procede sua interpretação de Dom Casmurro é valer-se das demais obras e textos de Machado de Assis. “Uma vez que o conjunto da obra de Machado de Assis apresenta a emergência de um intelecto estável e consistente, mergulhei em suas obras para elucidar um único romance.”[6]

Aqui, é possível fazer uma ligação com o método de interpretação das Sagradas Escrituras proposto por Espinosa[7]. O filósofo afirma que devemos “Coligir as opiniões contidas em cada livro (das Escrituras), reduzi-las aos pontos principais, por forma a encontrarem-se facilmente todas as que se referem ao mesmo assunto.”[8]

Caldwell adota esse procedimento durante toda a sua análise, mas principalmente no capítulo “O germe”, no qual analisa o livro Ressurreição, primeiro romance de Machado, que trata do tema do ciúme e também tem Shakespeare como inspiração. No capítulo “O que há num nome”, ela analisa a simbologia dos nomes das personagens machadianas, não apenas em Dom Casmurro, mas nos contos e romances do Bruxo do Cosme Velho. Vale lembrar que Espinosa afirmava que a história da Escritura deveria “descrever os pormenores de todos os livros dos profetas, bem como a vida, os costumes e os estudos de cada um dos autores (...)”.

Assim, este pequeno artigo tentou demonstrar de que maneira as teorias de Nietzsche e de Espinosa operaram em um importante trabalho da crítica literária do século 20, que foi a análise de Dom Casmurro feita por Caldwell.



[1] Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 15, 1998.

[2] Ferraz, Mª Cristina Franco. Nove variações sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, pág. 17, 2002.

[3] Foucault, Michel. “Nietzsche, Freud, Marx”. In: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organização e seleção de Manuel Barros da Motta. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, pág 40, 1995.

[4] Ferraz, Mª Cristina Franco. Nove variações sobre temas nietzschianos Rio de Janeiro: Relume Dumará, pág. 15, 2002.

[5] Machado de Assis. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM, pág. 116, 1997.

[6] Caldwell, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Cotia: Ateliê Editorial, pág. 13, 2002.

[7] A hermenêutica, ou arte de interpretar textos, surgiu como uma disciplina auxiliar da teologia e hoje tornou-se a ciência da interpretação de todos os textos. Ver Compagnon, Antoine. O demônio da teoria, tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG, pág. 59, 2001.

[8] Espinosa, Baruch de. “Da interpretação das escrituras”. In: Tratado teológico - político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, pág. 209, 1988.


[1] The brazilian Otelo of Machado de Assis foi publicado em 1960 pela University of California Press.

[2] Alfredo Pujol, Machado de Assis, São Paulo: Typographia Levi, p.240, 1917.

[3] Ver os aforismos quatro e cinco da Genealogia da Moral, que tratam da filologia a partir do ponto-de-vista de quem fala, ou seja, a força ativa.

[4] Schwarz, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 10, 1997.

[5] Schwarz interpreta a estrutura do romance como informação de uma estrutura social, ou seja, as relações de classe representadas. Gledson tenta demonstrar que Dom Casmurro é um romance genuinamente realista, pois “proporciona um panorama da sociedade brasileira do século 19”, que vivia então uma crise dos valores paternalistas.

[6] Gleson, John. Machado de Assis: impostura e realismo, Tradução de Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 9, 1991.

[7] Schwarz, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 10, 1997.

[8] Machado de Assis. Esaú e Jacó, Obras Completas, volume 1. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, pág.1109, 1997.

Obs: Apresentado no 9º Congresso Internacional da Abralic

sábado, setembro 03, 2005

Em busca da língua perfeita


Babel: uma maldição ou uma bênção? Essa reflexão norteia as mais de 450 páginas de Em busca da Língua Perfeita, livro escrito pelo intelectual italiano Umberto Eco. Nesse projeto, Eco tentou reunir um pouco de todas as utopias européias a respeito da busca de uma língua perfeita ou da língua original, aquela falada por Adão, assim como projetos de línguas universais. A tarefa foi extensa, pois passeia por dois mil anos de história, sendo que, apenas o século 19 teve 173 projetos de línguas internacionais. Ao contrário do que poderia se esperar, Eco não situa seu trabalho no campo da lingüística ou da semiótica, mas da história das idéias.
Embora o tema da confusão de línguas (assim como o desejo de remedia-la criando uma língua universal) esteja presente em diversas culturas, o autor optou por restringir seu estudo à Civilização Européia, até mesmo porque a obra faz parte do projeto The making of Europe, coordenado pelo historiador francês Jacques Le Goff,. Lançado em 1993, o livro se insere no projeto de consolidação da União Européia e, por isso, foi editado simultaneamente por cinco editoras do Velho Continente (C.H. Beck, de Munique, Blackwell, de Oxford, Crítica, de Barcelona, Laterza, de Roma e Seuil, de Paris).
Se no princípio era o verbo, pode-se dizer que também nesta história tudo começa no Velho Testamento: o capítulo 11 do Gênesis justifica a existência de tantas línguas diferentes como uma punição divina pela soberba humana. Porém, no capítulo 10, há uma contradição que abre a possibilidade de essa diversidade não ser entendida como uma desgraça. Falando sobre a difusão dos filhos de Noé, depois do dilúvio, a Bíblia diz que "desses derivaram as nações disseminadas pelos litorais (...) cada um com a própria língua (...)". Ou seja, antes do desmoronamento da Torre de Babel, a diversidade de línguas já estaria presente. Desgraça ou bênção, a curiosidade ou a nostalgia pela época que precedeu Babel e sua ''confusio linguarum'' moveu numerosos estudiosos da região em diversas épocas.
Em seu livro, Eco nos dá elementos para entender essa obsessão. Os gregos do período clássico já conheciam povos que falavam outras línguas, mas os chamavam de bàrbaroi, ou seja, seres que balbuciavam falando de forma incompreensível. Os filósofos gregos acreditavam que sua língua era o idioma da razão: Logos era pensamento e Logos o discurso. Com a expansão dessa civilização, uma língua grega unificada e uniforme (chamado Koinè) é ensinado nas escolas de gramática e se torna a língua oficial de toda a área dominada por Alexandre Magno. Sobrevive durante a dominação romana como língua cultural e se torna a língua em que são transmitidos os primeiros textos do cristianismo. A preocupação com a natureza e origem da linguagem está presente desde então: a obra Crátilo, de Platão, indaga se o nomóteta[1] escolhera palavras que nomeiam as coisas conforme a natureza de cada uma (tese de Platão), ou se determinou tais palavras por lei ou convenção humana (tese de Hermógenes).
Na época em que o grego (koinè) ainda domina a Bacia Mediterrânea, o latim começa a impor-se e se espalha por toda a Europa dominada pelos romanos para se tornar a língua da cultura cristã no Ocidente. Entre a queda do Império Romano e a Alta Idade Média, a Europa não existia ainda como unidade geográfica. Novas línguas se formaram lentamente, e calcula-se que no fim do século V, o povo já não falava mais o latim. Surgiram dialetos locais que misturavam o latim, linguagens anteriores à civilização romana e raízes introduzidas pelos bárbaros. Após a queda do Império Romano, há o nascimento dos reinos romano-barbáricos. A Europa apresenta-se então como uma Babel de línguas novas, e, somente depois, como um mosaico de nações. Cito o autor: "A Europa inicia-se com o nascimento das linguagens vernáculas (...), a sua irrupção inicia a cultura crítica da Europa que enfrenta o drama da fragmentação das línguas e começa a refletir em torno da própria civilização multilíngüe." Para Eco, a cultura européia tentou sanar este problema de duas formas: olhando para trás, em busca da língua de Adão, ou para frente, tentando construir uma língua da razão.
Explicadas as motivações profundas desta obsessão, podemos falar do vasto conteúdo de Em busca da Língua Perfeita. Eco dividiu a pesquisa em quatro grupos de interesse. O primeiro grupo engloba as línguas históricas, consideradas perfeitas em algum momento por serem dadas como originárias ou misticamente perfeitas. Entre as línguas sagradas estariam o hebraico, o egípcio e o chinês. No grupo das línguas especiais por sua relação com a razão estariam o grego, o latim e, a partir do século 16, várias línguas nacionais. Eco se detém em análises da Cabala (a idéia da criação do mundo como fenômeno lingüístico), dos trabalhos de Dante Alighieri (que na Idade Média reconheceu a linguagem como uma faculdade universal) e Raimundo Lúlio (com o projeto da Ars Magna, língua filosófica perfeita mediante a qual seria possível converter os infiéis). O segundo grupo de projetos abarca os estudos para a reconstrução da língua originária, a "língua-mãe". Aqui, Franz Bopp, Friedrich e Wilhelm von Schlegel procuraram encontrar relações entre o sânscrito, o grego, o latim, o persa e a língua deles, o alemão. Esses projetos se iniciam no século 18 e avançam no século 19. Chegou-se à hipótese de que o sânscrito não foi a língua originária, mas sim toda uma família de línguas (inclusive o sânscrito) teria se derivado de uma protolíngua (língua ancestral) não mais existente, que poderia ser o indo-europeu. O terceiro grupo de projetos é o de línguas construídas artificialmente e, por último, as línguas mais ou menos mágicas, que aspiram à perfeição pela expressividade místico-simbólica.
Há uma grande diferença entre a procura da língua perfeita, movida talvez pela crença de que como a estrutura da linguagem representaria a estrutura da realidade, a língua perfeita engendraria o mundo perfeito, e a busca da língua universal, que seria falada em todo o planeta. De volta ao início, nos perguntamos: afinal, a multiplicidade de línguas é positiva ou negativa? Nas páginas finais, Eco advoga a favor da diversidade e sugere que propósitos diversos estão por trás dos atuais projetos de LIAs (Línguas Internacionais Auxiliares), uns nobres, e outros nem tanto. Esses projetos serviriam ao o sonho da integração, mas também trazem a ameaça de dominação cultural e econômica. O poeta francês Michel Deguy, em entrevista à Revista Cult de novembro de 2001, afirma que a diferença de línguas é o último freio à instantaneidade das trocas econômicas. "Babel breca o mercado, mas o mercado infelizmente é mais forte do que tudo", afirma Deguy, que acredita que caminhamos para algum tipo de Esperanto. "Preciso de três segundos para transmitir uma ordem bancária, mas de 30 anos para traduzir Borges - e esse retardamento, que permite captar o tempo longo da tradição, é um grande obstáculo ao grande mercado mundial - e por isso há uma guerra", diz Deguy. No capítulo final, Eco cita V.V. Ivanov, a quem transcrevo aqui também para concluir: "Cada língua constitui um determinado modelo de Universo, um sistema semiótico de compreensão do mundo, e se temos 4 mil modos diferentes de descrever o mundo, isto nos torna mais ricos. Deveríamos preocupar-nos pela preservação das línguas tal como nos preocupamos com a ecologia".

EM BUSCA DA LÍNGUA PERFEITA
Assunto: Semiologia
Editora: Edusc
Páginas: 458Formato: 14X21 cm
Preço: R$ 39ISBN: 85-7460-109-8
Autor: Umberto Eco
Tradução: Antonio Angonese