sábado, setembro 03, 2005

Em busca da língua perfeita


Babel: uma maldição ou uma bênção? Essa reflexão norteia as mais de 450 páginas de Em busca da Língua Perfeita, livro escrito pelo intelectual italiano Umberto Eco. Nesse projeto, Eco tentou reunir um pouco de todas as utopias européias a respeito da busca de uma língua perfeita ou da língua original, aquela falada por Adão, assim como projetos de línguas universais. A tarefa foi extensa, pois passeia por dois mil anos de história, sendo que, apenas o século 19 teve 173 projetos de línguas internacionais. Ao contrário do que poderia se esperar, Eco não situa seu trabalho no campo da lingüística ou da semiótica, mas da história das idéias.
Embora o tema da confusão de línguas (assim como o desejo de remedia-la criando uma língua universal) esteja presente em diversas culturas, o autor optou por restringir seu estudo à Civilização Européia, até mesmo porque a obra faz parte do projeto The making of Europe, coordenado pelo historiador francês Jacques Le Goff,. Lançado em 1993, o livro se insere no projeto de consolidação da União Européia e, por isso, foi editado simultaneamente por cinco editoras do Velho Continente (C.H. Beck, de Munique, Blackwell, de Oxford, Crítica, de Barcelona, Laterza, de Roma e Seuil, de Paris).
Se no princípio era o verbo, pode-se dizer que também nesta história tudo começa no Velho Testamento: o capítulo 11 do Gênesis justifica a existência de tantas línguas diferentes como uma punição divina pela soberba humana. Porém, no capítulo 10, há uma contradição que abre a possibilidade de essa diversidade não ser entendida como uma desgraça. Falando sobre a difusão dos filhos de Noé, depois do dilúvio, a Bíblia diz que "desses derivaram as nações disseminadas pelos litorais (...) cada um com a própria língua (...)". Ou seja, antes do desmoronamento da Torre de Babel, a diversidade de línguas já estaria presente. Desgraça ou bênção, a curiosidade ou a nostalgia pela época que precedeu Babel e sua ''confusio linguarum'' moveu numerosos estudiosos da região em diversas épocas.
Em seu livro, Eco nos dá elementos para entender essa obsessão. Os gregos do período clássico já conheciam povos que falavam outras línguas, mas os chamavam de bàrbaroi, ou seja, seres que balbuciavam falando de forma incompreensível. Os filósofos gregos acreditavam que sua língua era o idioma da razão: Logos era pensamento e Logos o discurso. Com a expansão dessa civilização, uma língua grega unificada e uniforme (chamado Koinè) é ensinado nas escolas de gramática e se torna a língua oficial de toda a área dominada por Alexandre Magno. Sobrevive durante a dominação romana como língua cultural e se torna a língua em que são transmitidos os primeiros textos do cristianismo. A preocupação com a natureza e origem da linguagem está presente desde então: a obra Crátilo, de Platão, indaga se o nomóteta[1] escolhera palavras que nomeiam as coisas conforme a natureza de cada uma (tese de Platão), ou se determinou tais palavras por lei ou convenção humana (tese de Hermógenes).
Na época em que o grego (koinè) ainda domina a Bacia Mediterrânea, o latim começa a impor-se e se espalha por toda a Europa dominada pelos romanos para se tornar a língua da cultura cristã no Ocidente. Entre a queda do Império Romano e a Alta Idade Média, a Europa não existia ainda como unidade geográfica. Novas línguas se formaram lentamente, e calcula-se que no fim do século V, o povo já não falava mais o latim. Surgiram dialetos locais que misturavam o latim, linguagens anteriores à civilização romana e raízes introduzidas pelos bárbaros. Após a queda do Império Romano, há o nascimento dos reinos romano-barbáricos. A Europa apresenta-se então como uma Babel de línguas novas, e, somente depois, como um mosaico de nações. Cito o autor: "A Europa inicia-se com o nascimento das linguagens vernáculas (...), a sua irrupção inicia a cultura crítica da Europa que enfrenta o drama da fragmentação das línguas e começa a refletir em torno da própria civilização multilíngüe." Para Eco, a cultura européia tentou sanar este problema de duas formas: olhando para trás, em busca da língua de Adão, ou para frente, tentando construir uma língua da razão.
Explicadas as motivações profundas desta obsessão, podemos falar do vasto conteúdo de Em busca da Língua Perfeita. Eco dividiu a pesquisa em quatro grupos de interesse. O primeiro grupo engloba as línguas históricas, consideradas perfeitas em algum momento por serem dadas como originárias ou misticamente perfeitas. Entre as línguas sagradas estariam o hebraico, o egípcio e o chinês. No grupo das línguas especiais por sua relação com a razão estariam o grego, o latim e, a partir do século 16, várias línguas nacionais. Eco se detém em análises da Cabala (a idéia da criação do mundo como fenômeno lingüístico), dos trabalhos de Dante Alighieri (que na Idade Média reconheceu a linguagem como uma faculdade universal) e Raimundo Lúlio (com o projeto da Ars Magna, língua filosófica perfeita mediante a qual seria possível converter os infiéis). O segundo grupo de projetos abarca os estudos para a reconstrução da língua originária, a "língua-mãe". Aqui, Franz Bopp, Friedrich e Wilhelm von Schlegel procuraram encontrar relações entre o sânscrito, o grego, o latim, o persa e a língua deles, o alemão. Esses projetos se iniciam no século 18 e avançam no século 19. Chegou-se à hipótese de que o sânscrito não foi a língua originária, mas sim toda uma família de línguas (inclusive o sânscrito) teria se derivado de uma protolíngua (língua ancestral) não mais existente, que poderia ser o indo-europeu. O terceiro grupo de projetos é o de línguas construídas artificialmente e, por último, as línguas mais ou menos mágicas, que aspiram à perfeição pela expressividade místico-simbólica.
Há uma grande diferença entre a procura da língua perfeita, movida talvez pela crença de que como a estrutura da linguagem representaria a estrutura da realidade, a língua perfeita engendraria o mundo perfeito, e a busca da língua universal, que seria falada em todo o planeta. De volta ao início, nos perguntamos: afinal, a multiplicidade de línguas é positiva ou negativa? Nas páginas finais, Eco advoga a favor da diversidade e sugere que propósitos diversos estão por trás dos atuais projetos de LIAs (Línguas Internacionais Auxiliares), uns nobres, e outros nem tanto. Esses projetos serviriam ao o sonho da integração, mas também trazem a ameaça de dominação cultural e econômica. O poeta francês Michel Deguy, em entrevista à Revista Cult de novembro de 2001, afirma que a diferença de línguas é o último freio à instantaneidade das trocas econômicas. "Babel breca o mercado, mas o mercado infelizmente é mais forte do que tudo", afirma Deguy, que acredita que caminhamos para algum tipo de Esperanto. "Preciso de três segundos para transmitir uma ordem bancária, mas de 30 anos para traduzir Borges - e esse retardamento, que permite captar o tempo longo da tradição, é um grande obstáculo ao grande mercado mundial - e por isso há uma guerra", diz Deguy. No capítulo final, Eco cita V.V. Ivanov, a quem transcrevo aqui também para concluir: "Cada língua constitui um determinado modelo de Universo, um sistema semiótico de compreensão do mundo, e se temos 4 mil modos diferentes de descrever o mundo, isto nos torna mais ricos. Deveríamos preocupar-nos pela preservação das línguas tal como nos preocupamos com a ecologia".

EM BUSCA DA LÍNGUA PERFEITA
Assunto: Semiologia
Editora: Edusc
Páginas: 458Formato: 14X21 cm
Preço: R$ 39ISBN: 85-7460-109-8
Autor: Umberto Eco
Tradução: Antonio Angonese

2 comentários:

Anônimo disse...

sensasional

FARHAD SHAYANI disse...

Discordo da conclusão final de Eco:uma língua univesal serviria de ponte e undidade profunda da especie humana e fortaleceria sua responsabilidade de proteção e paz planetarias.
Farhad Shayani