segunda-feira, setembro 19, 2005

Caldwell, Nietzsche e Espinosa na guinada interpretativa de Dom Casmurro

1. Quem diz o quê para quem

Quero defender que o procedimento de Friedrich Nietzsche acerca da interpretação, exposto na primeira dissertação de Genealogia da Moral, foi o ponto-de-partida para Helen Caldwell marcar seu gol enquanto crítica literária. Lembrando o título de um dos primeiros romances de Machado de Assis, parece-me que o pensamento genealógico de Nietzsche e a leitura inovadora de Dom Casmurro feita por Caldwell no início dos anos 60 são como “a mão e a luva”. Explico. Como bem sabemos, e a própria Caldwell explicita em seu livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis[1], praticamente três gerações de críticos anteriores a esse estudo consideraram Dom Casmurro uma história de traição na qual Bento Santiago era a vítima da dissimulada Capitu, mulher, sem dúvida alguma, culpada de adultério. Um exemplo de como os críticos costumavam interpretar Dom Casmurro é o seguinte trecho de 1917:

Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha, Capitolina – Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre, consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em direito e casa-se com a companheira de infância. Capitu engana-o com o seu melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e quase mau.[2]

Dom Casmurro foi lançado em 1900; Caldwell publicou sua tese em 1960. Durante exatas seis décadas, nenhum crítico ousou questionar a palavra do narrador, no caso, Bento Santiago. A pergunta é: como Caldwell inverteu o jogo, abrindo essa nova via interpretativa? Lembremo-nos de Nietzsche, quando explica a origem das palavras “bom” e “mau”, noção que desvela que a interpretação deve sempre levar em contaquem diz o quê, para quem, que posição ocupa e o que pretende com essa fala[3]. Ora, mas não foi exatamente esse o ponto de vista inovador de Caldwell no estudo de Dom Casmurro? Até então, os críticos não haviam se feito essas questões. Por meio delas, Caldwell abriu novas perspectivas de leitura para o romance.

Outro crítico machadiano, Roberto Schwarz, aponta três possíveis leituras sucessivas que a obra pode suscitar, sendo que devemos a última ao olhar de Caldwell. São elas:

Romanesca, onde acompanhamos a formação e decomposição de um amor; outra, de ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher.[4]

É interessante ressaltar que a partir da interpretação de Caldwell, surgem novas importantes perspectivas de leitura do romance, como as dos críticos Roberto Schwarz e John Gledson.[5] O importante é que, com Caldwell, o leitor tomou consciência de que a própria história do suposto adultério foi interpretada primeiramente pelo narrador, uma noção tipicamente nietzschiana.

Bento Santiago, o representante da classe dos senhores de escravos, conta-nos sua história para fazer-nos partilhar de sua crença que, de fato, Capitu (a menina pobre) o enganara, e que esse fato o transformou numa pessoa “fria”. Caldwell coloca o narrador sob suspeição, inaugurando o “paradigma do pé atrás”, para citar as palavras de Abel Baptista. Depois dessa interpretação, já não podemos mais confiar no narrador, pois ele pode estar encobrindo interesses particulares ou nefastos. Ou melhor, os interesses vinculados à posição que ocupa. Embora não existam provas concretas dessa traição, devemos acreditar em Bento, uma personagem extremamente ciumenta? Mas se é assim, por que demorou tanto tempo para que essa leitura fosse levada a cabo? Para Gledson, uma das explicações é a de que os narradores em primeira pessoa criados por Machado

(...) foram intencionalmente concebidos para agradar o leitor, aliciá-lo no sentido de aceitar o ponto de vista do narrador. Concordamos com eles porque compartilhamos suas atitudes – é por isso que a (possível) inocência de Capitu levou tanto tempo para ser descoberta e, talvez, também por isso, foi descoberta por uma mulher.[6]

Schwarz também destaca a importância do fato de Caldwell ser estrangeira, mulher e criada em uma cultura protestante. O leitor e os críticos brasileiros estariam tão impregnados com a cultura católica e os preconceitos de classe locais que se deixaram levar pela palavra do narrador. Ele sugere que “se a reviravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque este se deixa seduzir pelo prestígio poético e social da figura que está com a palavra”.[7]

Por isso, acredito que o procedimento nietzschiano está fortemente presente na guinada interpretativa de Dom Casmurro, pois a proposição-chave de Caldwell foi perguntar: “quem está com a palavra, afinal?”. Ela apontou a força ativa ou dominante do texto (Bento Santiago) e a força reativa ou dominada (Capitu). A partir dessa identificação, tomou para si a tarefa de inverter essas posições. No entanto, ela desvirtua-se da filologia rigorosa apregoada por Nietzsche quando se empenha em provar que a intenção primeira de Machado de Assis era que entendêssemos Bento como um ser movido pelo delírio do ciúme, já que o escritor teria baseado-se em Otelo para escrever sua história, e que, por tabela, Capitu é tão inocente como assim o era a Desdêmona de Shakespeare. O fato é que não é possível chegar a uma conclusão sobre o adultério de Capitu. E nisso peca Caldwell em sua crítica: tentando inocentar Capitu a todo o custo, incorre no erro de querer encontrar uma verdade que não está no texto. Sob o viés da filologia rigorosa nietzschiana, a interpretação de Caldwell é válida por abrir uma nova perspectiva de interpretação, mas não quando tenta desvendar uma verdade original do texto.

2. Leitura ruminante e interpretação

Uma curiosidade, ou melhor, uma identidade inusitada entre Nietzsche e Machado de Assis é o conceito de leitura ruminante. No capítulo 55 de Esaú e Jacó, livro escrito logo após Dom Casmurro, Machado fala que “o leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida”.

Mas Machado também fala da necessidade de o leitor preencher lacunas, o que aponta para as várias possibilidades de interpretação, já que cada um poderia preencher tais lacunas como grande liberdade. Essa concepção machadiana está em Dom Casmurro, quando o narrador alega ter “memória fraca” para assim desculpar-se das omissões: “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. (...) É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas”.[5]

3. Uma aproximação ao método de Espinosa

Outra das formas pelas quais Caldwell procede sua interpretação de Dom Casmurro é valer-se das demais obras e textos de Machado de Assis. “Uma vez que o conjunto da obra de Machado de Assis apresenta a emergência de um intelecto estável e consistente, mergulhei em suas obras para elucidar um único romance.”[6]

Aqui, é possível fazer uma ligação com o método de interpretação das Sagradas Escrituras proposto por Espinosa[7]. O filósofo afirma que devemos “Coligir as opiniões contidas em cada livro (das Escrituras), reduzi-las aos pontos principais, por forma a encontrarem-se facilmente todas as que se referem ao mesmo assunto.”[8]

Caldwell adota esse procedimento durante toda a sua análise, mas principalmente no capítulo “O germe”, no qual analisa o livro Ressurreição, primeiro romance de Machado, que trata do tema do ciúme e também tem Shakespeare como inspiração. No capítulo “O que há num nome”, ela analisa a simbologia dos nomes das personagens machadianas, não apenas em Dom Casmurro, mas nos contos e romances do Bruxo do Cosme Velho. Vale lembrar que Espinosa afirmava que a história da Escritura deveria “descrever os pormenores de todos os livros dos profetas, bem como a vida, os costumes e os estudos de cada um dos autores (...)”.

Assim, este pequeno artigo tentou demonstrar de que maneira as teorias de Nietzsche e de Espinosa operaram em um importante trabalho da crítica literária do século 20, que foi a análise de Dom Casmurro feita por Caldwell.



[1] Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 15, 1998.

[2] Ferraz, Mª Cristina Franco. Nove variações sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, pág. 17, 2002.

[3] Foucault, Michel. “Nietzsche, Freud, Marx”. In: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organização e seleção de Manuel Barros da Motta. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, pág 40, 1995.

[4] Ferraz, Mª Cristina Franco. Nove variações sobre temas nietzschianos Rio de Janeiro: Relume Dumará, pág. 15, 2002.

[5] Machado de Assis. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM, pág. 116, 1997.

[6] Caldwell, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Cotia: Ateliê Editorial, pág. 13, 2002.

[7] A hermenêutica, ou arte de interpretar textos, surgiu como uma disciplina auxiliar da teologia e hoje tornou-se a ciência da interpretação de todos os textos. Ver Compagnon, Antoine. O demônio da teoria, tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG, pág. 59, 2001.

[8] Espinosa, Baruch de. “Da interpretação das escrituras”. In: Tratado teológico - político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, pág. 209, 1988.


[1] The brazilian Otelo of Machado de Assis foi publicado em 1960 pela University of California Press.

[2] Alfredo Pujol, Machado de Assis, São Paulo: Typographia Levi, p.240, 1917.

[3] Ver os aforismos quatro e cinco da Genealogia da Moral, que tratam da filologia a partir do ponto-de-vista de quem fala, ou seja, a força ativa.

[4] Schwarz, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 10, 1997.

[5] Schwarz interpreta a estrutura do romance como informação de uma estrutura social, ou seja, as relações de classe representadas. Gledson tenta demonstrar que Dom Casmurro é um romance genuinamente realista, pois “proporciona um panorama da sociedade brasileira do século 19”, que vivia então uma crise dos valores paternalistas.

[6] Gleson, John. Machado de Assis: impostura e realismo, Tradução de Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 9, 1991.

[7] Schwarz, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 10, 1997.

[8] Machado de Assis. Esaú e Jacó, Obras Completas, volume 1. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, pág.1109, 1997.

Obs: Apresentado no 9º Congresso Internacional da Abralic

Nenhum comentário: