sexta-feira, setembro 02, 2005

Memórias de uma incrível biblioteca


Pode ser Juan Dahlmann às voltas com um velho exemplar de As mil e uma noites no conto "El Sur", ou mesmo o cego Malaquias de O nome da rosa: as bibliotecas e a figura daqueles que conhecem os segredos de seus labirintos sempre fascinam. Agora chegou a vez de Cristina Antunes contar um pouco de como é esse ofício. Principal colaboradora do bibliófilo José Mindlin na administração de sua biblioteca, Cristina está lançando Memórias de uma guardadora de livros. Ele, por sua vez, escreveu Memórias esparsas de uma biblioteca. Os dois volumes são apresentados em uma caixa, lado a lado, como que para comemorar a parceria harmoniosa de mais de 20 anos.

Com seu relato, Cristina nos leva por entre as prateleiras que abrigam a coleção de Guita e José Mindlin, contando histórias divertidas e interessantes ocorridas no interior dessa que é a maior biblioteca privada do país. Cristina, que formou-se em Pedagogia, circula com desenvoltura em meio aos cerca de 30 mil exemplares, dos quais 10 mil são raridades e 2 mil são verdadeiras preciosidades. "Não sou bibliotecária de formação, sou bibliotecária de paixão, de amor, de cuidado com o livro", diz ela, que ao longo dos anos também passou a exercer o trabalho de paleógrafa e tradutora. Cristina acabou contaminada pelo vírus dos colecionadores: formou sua própria coleção de literatura de cordel, que já conta com 800 folhetos.

Esse amor dedicado aos livros é o laço que une Cristina e Mindlin. Em 8 de setembro próximo, ele completará 90 anos e, a julgar pelas histórias relatadas no livro, sua memória deve ser, mais do que invejada, festejada. Ele conta com detalhes de como foi constituindo sua coleção, fala da amizade com nomes como João Cabral de Melo Neto, Thiago de Mello, entre outros. Relembra várias personagens que conheceu de perto, como editores, bibliófilos, estudiosos, livreiros, do Brasil e do exterior, e resgata a memória de editoras alternativas que foram importantes para a cultura brasileira do século 20.

Sua contribuição à cultura nacional, no entanto, transcende a atividade de bibliófilo. "Mindlin ama os livros e coleciona exemplares raros e preciosos, mas vai muito além disso: patrocinou a publicação de obras que pela importância dos textos e dos refinados projetos gráficos tornaram-se logo raridades, ajudou a manter importantes revistas literárias, patrocinou edições fac-similares de revistas fundamentais para a compreensão do modernismo no Brasil, auxiliou de muitas formas pesquisadores brasileiros e estrangeiros", ressalta o editor Cleber Teixeira no prefácio de Memórias esparsas de uma biblioteca.

Mindlin começou sua coleção aos 13 anos, quando comprou o Discurso sobre a História Universal, de Jacques Bossuet, uma edição portuguesa do século 18. Hoje, em se tratando de literatura brasileira, sua coleção supera até mesmo a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O conjunto inclui desde manuscritos dos Sermões do Padre Vieira a edições originais de relatos das primeiras viagens de cunho científico pelo Brasil, como a de Hans Staden, as cartas de dom Manuel ao Papa, os originais de Grande Sertão: Veredas e Sagarana, de Guimarães Rosa, e praticamente todas as grandes obras da literatura brasileira. Para ilustrar a riqueza do acervo, basta dizer que fazem parte dela as duas edições de Os Lusíadas datadas de 1572, coisa que nem a biblioteca de Lisboa dispõe. Além disso, mapas, centenas de gravuras em madeira, metal, aquarelas e matrizes de xilogravuras completam a brasiliana.

Os relatos nasceram de depoimentos a Dorothée de Bruchard e a Cleber Teixeira. Os volumes - editados pelo Escritório do Livro, de Florianópolis, em parceria com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - fazem parte da coleção Memória do Livri. Em apêndice, o livro de Mindlin traz um ensaio inédito intitulado "O livro no Brasil: bibliotecas e tipografias". O volume assinado por Cristina também traz um artigo sobre a biblioteca ainda inédito no Brasil, publicado originalmente na Revista Portuguesa de História do Livro.

Publicada no "Caderno Cultura", Diário Catarinense em 21/08/2004.

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