quarta-feira, julho 23, 2008

Resenha: A tradução e a letra ou o albergue do longínquo agora em português




Antoine Berman - considerado um dos mais relevantes teóricos e críticos de tradução da França do século 20 - acaba de ter mais uma de suas obras publicadas no Brasil. Trata-se de A tradução e a letra ou o albergue do longínquo, lançado pela editora 7Letras em parceria com o Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Esta é a segunda obra de sua autoria que chega ao leitor brasileiro, atendendo ao crescente interesse que os Estudos da Tradução vêm despertando no país.
A expressão “albergue do longínquo”, conforme explicam em nota os tradutores desta edição para o português, é uma referência ao trovador medieval Jaufré Rudel, que escreveu sete canções nas quais canta o amor longínquo, ou seja, impossível e sem esperança. Assim, Berman manifesta já no título da obra a sua crença de que a tradução traz consigo a possibilidade de acolher aquele que está distante, ou seja, o Outro. Para Berman, a ida em direção à cultura estrangeira, com seus diferentes conhecimentos e subjetividades, está na gênese desta atividade e deveria nortear a sua ética. No excelente A prova do estrangeiro (Edusc: 2002), ele demonstrou, por meio do exemplo alemão da Bildung, o quanto um país pode enriquecer a cultura nacional ao ir ao encontro do estrangeiro para fazer uma releitura da própria cultura.
Na primeira parte de A tradução e a letra, Berman se dedica a fazer uma crítica das formas “tradicionais” de tradução, formas nas quais a mesma seria caracterizada pelo etnocentrismo do ponto de vista cultural e, do ponto de vista literário, pelas relações hipertextuais. Hipertextual, para Berman, remete a todo texto que se engendra por imitação, paródia, pastiche, adaptação, plágio ou toda espécie de transformação formal a partir de um texto já existente. Já o etnocentrismo estaria presente nas práticas que submetem o texto estrangeiro à própria cultura, normas e valores, considerando o que está situado fora dela como negativo ou bom apenas para ser anexado e adaptado. Um exemplo é a França dos séculos 17 e 18 que, com suas belas infiéis, difundiu que o mérito de uma tradução deveria ser o de aperfeiçoar e de embelezar o original, se apropriando do mesmo para lhe conferir um ar nacional. Berman alerta que essa concepção não pertence apenas ao passado (p. 28). “A amplitude das correções, ajustes, supressões, modificações de todo tipo, diminuíram, mas não desapareceram. São as formas ainda hoje dominantes de tradução, práticas que tradutores, críticos, escritores e autores normalmente consideram como normais e normativas da tradução”, diz ele.
Para o teórico, a essência da tradução etnocêntrica está fundada na primazia dada ao sentido. Berman afirma que “uma obra abre a experiência de um mundo manifestado em sua totalidade”, o que significa muito mais do que simplesmente transmitir uma mensagem. Portanto, em vez de traduzir priorizando o sentido, Berman propõe que se traduza literalmente. Justamente aí surge um dos desafios de A tradução e a letra: explicar o que devemos entender por “tradução literal”. Para Berman, não se trata de uma tradução palavra por palavra ou servil, mas de uma tradução que leve em conta a letra do texto. Por isso, na segunda parte do livro, Berman defende a idéia de que para termos acesso à verdade da tradução, sua verdade ética, é preciso que haja uma destruição das teorias reinantes e uma análise das tendências deformadoras da letra que operam em toda a tradução. Não se trata de uma teoria normativa que ensine como traduzir, mas um alerta para as forças que tendem a deformar a letra. Partindo desse princípio, o autor seleciona treze tendências deformadoras que costumam se manifestar no texto traduzido, como o ato de impor clareza quando o texto original é obscuro, alongar frases, deixar o texto "mais belo" que o original, entre outras.
Para conceituar a ética da tradução, Berman resgata o argumento do filósofo alemão Friedrich Schleiermacher, que em 1813, publicou o texto “Sobre os diferentes métodos de tradução” [“Ueber die verschiedenen Methoden des Uebersezens”]. Nesse texto, ele afirmava que o tradutor teria duas escolhas: ou levar o autor até o leitor ou fazer com que o leitor vá ao encontro do autor. Schleiermacher faz uma clara opção por “estrangeirizar” a tradução. A ética da tradução consiste em, segundo Berman, reconhecer e receber o Outro enquanto Outro, movido pelo desejo de conhecê-lo, não de dominá-lo (p. 68). Na prática, isso se daria por meio do respeito à letra do texto. Berman encerra o livro analisando trabalhos que considera exemplos de traduções literais, como Hölderlin e suas traduções de obras de Safo e de Sófocles, Chateaubriand e a tradução de Paraíso Perdido, de Milton, e a tradução da Eneida, de Virgílio, realizada por Klossowski. Quer concordemos ou não com as idéias de Berman neste instigante livro, não resta dúvida de que seu alerta contra a homogeneização da linguagem nas traduções deve ser levado em conta.
A TRADUÇÃO – Três professores da Pós-graduação em Estudos da Tradução (PGET), UFSC, foram os responsáveis por trazer ao português A tradução e a letra...: Marie-Hélène Torres, Mauri Furlan e Andréia Guerini. Sem dúvida, trata-se de uma vantagem para o leitor brasileiro, que tem acesso a um texto traduzido por pesquisadores especialistas em tradução que conhecem com profundidade a obra do autor traduzido. No entanto, precisamente por isso, seria válido encontrar na edição a informação, ainda que resumida, de quem são os tradutores e qual é a relação dos mesmos com a obra de Berman. Da mesma forma, seria interessante que constasse uma nota biográfica sobre Berman.
A orelha do livro é assinada pelo conceituado poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, que introduz a obra sem deixar passar a oportunidade de dar uma alfinetada pelo fato de Berman considerar como “literal” a tradução de Chateaubriand que transforma em prosa os versos de Paraíso perdido. Ponto a destacar é a preocupação dos tradutores em seguir em sua própria prática algumas das orientações do teórico francês; por exemplo, a de respeitar na maior parte do tempo a pontuação do texto original, além de criar neologismos no texto traduzido todas as vezes em que o original também os apresentava. Esses e outros procedimentos adotados durante a tradução são explicados em uma Nota dos Tradutores que abre o livro.
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quarta-feira, fevereiro 20, 2008

Encantos de Cortázar



Gosto muito de Julio Cortázar, principalmente de seus contos. Quando eu tinha uns 13 ou 14 anos, meu irmão levou Bestiário para casa. Fiquei impressionada com “Casa tomada”, que permanece até hoje como um dos meus contos favoritos. Também adoro “Cartas de mamá”. Uns anos atrás, traduzi “Continuidad de los parques” a pedido de um professor amigo da UFSC que usou a tradução em suas aulas. É um conto muito interessante, circular, no qual realidade e ficção se entrelaçam. Vale a pena ler. Abaixo, eis a minha tradução.

Continuidade dos bosques

Começara a ler o romance alguns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à fazenda. Deixava-se envolver lentamente pela trama, pelo desenho das personagens. Nessa tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador e discutir com o administrador uma questão de arrendamentos, voltou ao livro na tranqüilidade do estúdio que dava para o bosque dos carvalhos. Acomodado em sua poltrona favorita, de costas para a porta que o teria importunado como uma irritante possibilidade de intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse vez e outra o veludo verde e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforços os nomes e as imagens dos protagonistas, a ilusão novelesca invadiu-o quase em seguida. Gozava do prazer quase perverso de desprender-se linha a linha do que o rodeava e sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do encosto alto, que os cigarros seguiam ao alcance da mão, que mais além dos janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pelo sórdido dilema dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se ordenavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana da montanha. Primeiro entrava a mulher, temerosa; agora chegava o amante, com o rosto machucado pela chicotada de uma rama. Admiravelmente ela estancava o sangue com seus beijos, mas ele rechaçava as carícias, não havia vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal amornava-se contra seu peito e, por baixo, pulsava a liberdade escondida. Um diálogo ofegante corria pelas páginas como um arroio de serpentes, e sentia que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como querendo retê-lo e dissuadi-lo, desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O reexame sem piedade interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma face. Começava a anoitecer.
Já sem se olhar, atados rigidamente à tarefa que lhes esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia seguir pela trilha que ia para o norte. Da trilha oposta, ele voltou-se um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu também, esquivando-se de árvores e de cercas até distinguir na bruma malva do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cães não deviam latir, e não latiram. O administrador não estaria àquela hora, e não estava. Subiu os três degraus do alpendre e entrou. Do sangue galopando em seus ouvidos chegavam as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um corredor, uma escadaria atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta da sala e, então, o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.

Julio Cortázar
Tradução de Marlova Aseff