domingo, novembro 20, 2005

A dor e a delícia da tradução


Como muitos de vocês sabem, estou fazendo doutorado na área de Teoria Literária - Teoria da Tradução. No momento, estou vivendo "a dor e a delícia" do processo de traduzir, que oscila entre sentimentos de prazer e de conflito. Para Walter Benjamin, a tradução está no meio do caminho entre a criação literária e a teoria. Quando se aproxima da criação, me dá mais prazer.
Abaixo, uma entrevista que fiz com o grande e já lendário tradutor Boris Schnaiderman. Foi publicada nos Cadernos de Cultura dos jornais Diário Catarinense e Zero Hora em 27/3/2004.

Principal intérprete da cultura russa no Brasil, Boris Schnaiderman diz que para se verter uma obra para outra língua é preciso coragem



Boris Schnaiderman é a prova viva do tanto que um homem pode contribuir para a cultura de um país. Reconhecido como o grande intérprete da cultura russa no Brasil, devemos a ele o privilégio de ler o melhor dessa literatura em traduções feitas diretamente do original (e não mais através de línguas intermediárias). Ensaísta produtivo e professor, foi o responsável pela criação do curso de língua e literatura russa da Universidade de São Paulo (USP), no qual participou da formação de uma geração de tradutores. Ajudou a divulgar entre nós poetas como Puchkin e Maiakóvski, cujos poemas traduziu em parceria com os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Para ele, seu ofício é sinônimo de coragem e ousadia: “Sem ousadia não há bom tradutor”, diz.
Nascido na Ucrânia, no ano da revolução bolchevique, ainda criança ele aportou no Brasil. Hoje, chegando aos 87 anos, Schnaiderman continua em plena produção. Deve lançar em breve o livro Tradução, ato desmedido (editora Perspectiva) e está revisando sua tradução de O Jogador, de Dostoiévski, que será relançada com o título de Um jogador. Seu relato autobiográfico Guerra em surdina também terá nova edição este ano. Sua vida de trabalho intelectual foi reconhecida no ano passado pela Academia Brasileira de Letras com o recém-criado Prêmio de Tradução. Durante sua visita a Florianópolis, onde veio proferir a aula inaugural do curso de Pós-Graduação em Estudos da Tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), concedeu a seguinte entrevista:

Diário Catarinense - O senhor nasceu justamente no ano da revolução bolchevique, fato que afetou seu destino...
Boris Schneiderman - Sim, eu nasci em 1917 numa cidade pequena da Ucrânia. Pouco após a revolução, quando eu tinha mais ou menos um ano, meus pais me levaram para Odessa porque era o período das grandes matanças de judeus que ocorreram na Ucrânia. Vivi minha primeira infância em Odessa e vim para o Brasil aos oito anos com meus pais.

DC - Como o senhor avalia as conseqüências desse período para a cultura russa?
BS - Houve essa coisa horrível que foi a opressão, que se fez sentir alguns anos após a revolução. Nos anos imediatamente após a revolução, havia uma certa soltura, não havia tanta repressão. Claro que eles se preocupavam com atividades contra-revolucionárias, houve fuzilamentos. Um poeta importante como Nicolai Gumilióv foi fuzilado. Mas, de um modo geral, o clima não era tão opressivo como a partir de 1929-1930, com a ascensão de Stálin. Para a cultura, foi terrível. Era proibido, por exemplo, escrever um romance que não se enquadrasse nas normas da literatura do século 19. A poesia tinha que ser aquela mais tradicional... A prevenção contra as vanguardas já existia desde os primeiros tempos da revolução. Houve essa contradição de que os dirigentes tinham um gosto muito arcaico. Eram pessoas cultas, polidas, mas muito direcionadas para a política. Alguns, como o comissário de instrução pública, uma espécie de ministro da educação, era um homem muito culto e que no início, pelo menos, mostrou uma abertura muito grande para o desenvolvimento cultural, mesmo de correntes que eram contrárias ao que ele fazia. Depois é que as coisas foram piorando. Mas está errado pensar que não se produziu coisas de valor na época. Esses tempos eu fiz uma palestra em Fortaleza, e um escritor me perguntou como na Rússia foi possível que aquela grande literatura do século 19 simplesmente desaparecesse. Estava errada a opinião que ele tinha. Um escritor como Isaac Bábel, apesar de ter produzido pouco, é um escritor de primeira. Ernest Hemingway o admirava e dizia que sentia inveja da concisão de sua escrita. Logo Hemingway, que era tão direto, sempre apontado como modelo de escritor conciso.

DC - Quantas vezes o senhor retornou à Rússia?
BS - O primeiro retorno foi em 1965, já como professor da USP. Antes disso, era difícil de voltar porque eu era cidadão soviético (estava naturalizado brasileiro, mas tinha passaporte soviético). Nossa família havia saído legalmente, então eu era mais ou menos um renegado: alguém que tem passaporte e não se liga à Pátria. Mas depois de 1965 eu retornei várias vezes.

DC - E o senhor vê identidades entre a Rússia de hoje e o Brasil.
BS – Há em comum a má distribuição de renda, o subdesenvolvimento, enfim, as coisas piores.

DC – Mas é verdade que os russos também têm a “cultura do jeitinho”?
BS - É, têm sim. Nos anos que se seguiram à revolução, era típico: cada um costumava dar o seu “jeitinho”. Isso a gente pode ver na literatura da época. Acontece o seguinte: a literatura russa anterior a esse fechamento era forte. Está errado dizer que havia desaparecido totalmente. Era a época do Maiakóvski, do Boris Pasternak. Havia grandes escritores que estavam produzindo coisas boas. Mas o que me surpreendeu muito, foi que depois da Glasnost, apareceu tanta coisa, uma riqueza de textos. Foi incrível.

DC - É o que o senhor trata no livro de ensaios Os escombros e o mito, não?
BS: Sim, a finalidade desse livro é justamente toda essa cultura muito rica que ficou escondida, guardada nas gavetas. E era perigosíssimo. Há aquela frase famosa de
um poeta russo dizendo que a Rússia era um país onde a poesia tinha um peso muito grande, tanto que era o único lugar no qual se fuzilava por causa de um verso. Tanto é verdade que ele morreu vítima da repressão por causa de um poema.

DC - Dos grandes escritores russos que o senhor traduziu, como Tolstói, Tchekhov, Dostoiévski, Púchkin, Górki, etc, quais o que mais gosta?
BS - É difícil dizer porque eu só traduzo textos que me tocam de perto. Claro que há maiores e menores. Por exemplo, Górki eu não colocaria no mesmo plano de Tolstói e Dostoiévski. No entanto, tenho afinidade, gosto de muita coisa do Górki. Eu não saberia dizer se admiro mais Tolstói ou Dostoiévski. Eu não diria que um é maior do que o outro, é uma discussão meio boba.

DC - O senhor disse certa vez que é preciso coragem para traduzir Dostoiévski...
BS - Mas ao mesmo tempo é preciso ousar. Uma tarefa assim não deve assustar, deve estimular a pegar o texto e ir em frente, trabalhar. Se eu fizer um trabalho imperfeito, depois virá alguém que o fará melhor. Sem ousadia não há bom tradutor.

DC - Qual é o nível da literatura russa contemporânea?
BS - Não tenho condições de julgar. Eu conheço algumas obras bem interessantes. Recentemente tive uma surpresa com um romance que apareceu e que havia sido escrito em um período que não se podia publicar certas coisas. O romance se chama Verão em Baden-Baden, de Leonid Tsipkin, e foi lançado recentemente pela Companhia das Letras.

DC - No que o senhor está trabalhando no momento?
BS - Preciso acabar de revisar uma tradução minha de Um jogador, de Dostoiévski. Eu prefiro “um jogador”e não “o jogador”, título que já se consagrou. O motivo eu vou explicar no prefácio ou em uma nota do livro. Mas estou mais envolvido neste momento em um livro sobre tradução, que vai se chamar Tradução, ato desmedido, e será lançado pela editora Perspectiva. Nesse livro, defendo a posição, que até anos atrás era considerada ousada demais, de que o tradutor na verdade é co-autor da obra na língua de chegada. De vez em quando também escrevo artigos.


DC - O senhor comentou de um dilema que já viveu como tradutor: o risco de a tradução ficar ora muito “endomingada”, ora muito “prosaica”. Como encontrar o tom certo?
BS - Aí é que está a arte. A tradução é uma arte! Não adianta traduzir uma obra que é solta, numa linguagem simples, e colocar adjetivos, torná-la mais solene.

DC - Como foi a sua experiência de traduzir junto aos irmãos Campos?
BS - Foi uma experiência muito rica, eu aprendi muito. Eu os conheci em 1961 quando eles foram à minha casa com o Décio Pignatari. Eu havia publicado um artigo sobre Maiakóvski e eles se interessaram. Nós nos reuníamos para traduzir, eu fazia a primeira tradução e sugeria alguns procedimentos. Em cima disso, eles trabalhavam. Depois de pronto o poema, eles me mostravam. Isso na maioria dos casos, pois eles também traduziam do francês e do inglês e me davam para eu confrontar com o texto em russo.

DC - Há algum autor que o senhor não traduziu ainda, mas gostaria?
BS - Sim, vários. Eu citaria Daniel Kharms, que produziu uma obra de literatura do absurdo. Inclusive ele tem uma peça de teatro do absurdo. Ele começou a aparecer na segunda metade da década de 20. Era conhecido como autor de livros para crianças, de histórias estapafúrdias que as crianças gostam e que eram o seu ganha-pão. Depois, em seu diário, ele confessou que detestava crianças. Foi um precursor de Samuel Beckett e de Ioneso. Na segunda metade da década de 20, havia um grupo de Leningrado que fazia esse tipo de literatura. Era o grupo Oberiúti. E Kharms era, para mim, o mais importante destes autores que narravam o absurdo que surgia naturalmente da vida russa.
fim de texto

Falando em tradução...

Pessoal: já que postei a entrevista com o Schnaiderman, agora publico um texto que ele fez sobre o livro Memória de Tradutora, do qual participei como entrevistadora e editora do texto. Está excelente, não percam! A resenha fou publicada em 16 de Outubro de 2005.

Paradoxos da profissão impossível

Memória de Tradutora, de Rosa Freire d'Aguiar, reafirma bases que norteiam este complexo compromisso literário

Boris Schnaiderman
Especial para o Estado

A tradução é uma atividade paradoxal por excelência. Aliás, como afirmou José Ortega y Gasset num estudo magistral, Esplendor y Miseria de la Traducción (Obras, Madrid, Espasa-Calpe, 1943), ela é, em princípio, impossível. Pois, se lemos num texto brasileiro a palavra "floresta", logo pensamos na floresta amazônica, num mundo de vegetação luxuriante e diversificada, ou nas queimadas que a devastam atualmente, enquanto um alemão, quando lê wald, vê mentalmente uma floresta européia, regular e uniforme, com as árvores mais agrupadas por espécies. Mas, impossível em princípio, a tradução tem de ser feita. E Ortega y Gasset afirma então que tudo o que o homem realiza de grande situa-se no campo do impossível. Este e outros paradoxos vêm logo à lembrança com a leitura de um livro notável, Memória de Tradutora, com Rosa Freire d'Aguiar, da coleção Memórias do Livro, publicado pela editora Escritório do Livro, de Florianópolis. O volume contém uma entrevista da tradutora com Dorothée de Bruchard e Marlova Aseff (sendo desta última também a edição do texto), além de um prefácio de Clélia Piza e do trabalho da entrevistada O Compromisso da Tradução, apresentado como aula inaugural do Mestrado em Estudos de Tradução, proferida em agosto de 2004 na Universidade Federal de Santa Catarina. Sem dúvida, a simples existência deste livro constitui outro paradoxo. Muito bem feito materialmente, bem acabado, e contendo matéria tão importante para todos os que se interessam por esse tema, ele dificilmente será encontrado em livrarias do Rio ou de São Paulo. Trata-se de um velho problema: obras de grande relevância aparecem editadas longe dos centros maiores e acabam tendo uma circulação geograficamente limitada, quando o justo seria circularem pelo território nacional. Sim, é um velho problema, sobre o qual nunca é demais insistir. Rosa Freire d'Aguiar teve atuação importante no jornalismo, mas, tendo residido alguns anos em Paris, passou a dedicar-se a partir de certo momento à tradução. Nessa atividade, alcançou mestria inegável e o vulto de sua produção chega a ser quase um enigma, dado o nível atingido. Pois, em pouco mais de 15 anos, chegou a traduzir mais de 60 livros, alguns bem volumosos. Ao mesmo tempo, ela dá conta das pesquisas trabalhosas para resolver bem os seus problemas de tradutora. Chega a ser impressionante o relato que faz de seus encontros com o buquinista André Bernot, fanático pela obra de Céline, e que tentou vender-lhe os Panfletos desse autor, "delirantemente anti-semitas, a ponto de pregar o ódio racial e a morte dos judeus, e que valeram a sua desgraça para o resto da vida e estão até hoje proibidos". Aqui, chegamos certamente a uma contradição dolorosa. Mais uma vez em princípio, para se traduzir bem um autor, é preciso identificar-se com o original, o texto traduzido é como que a expressão de uma segunda natureza do tradutor. Mas, ao mesmo tempo, o autor da obra é um outro, eu não posso encampar as suas idiossincrasias, os seus rancores e preconceitos. Tive que lidar com este problema desde a minha primeira tradução de Dostoievski. Não há como aceitar o seu chauvinismo grão-russo, o seu anti-semitismo e a sua prevenção contra os poloneses. E, ao mesmo tempo, tenho que dá-lo, na língua de chegada, em todo o seu furor e desvario. Afinal, a literatura não pode ser reduzida à amenidade dos jogos florais. Por conseguinte, em lugar de uma simples identificação, acaba-se tendo uma relação de amor e ódio. Chega-se, até, a uma nova categoria: a tradução raivosa, isto é, aquela que se faz com raiva do autor. Rosa Freire d'Aguiar lidou com este problema em toda a sua pungência. Fascinada por Céline, dando o melhor de si para transmiti-lo numa linguagem adequada em português, realizando para este fim giros de linguagem incríveis, afirma porém: "Céline é uma mistura de gênio e de celerado, mas, sobretudo, um homem de sensibilidade doentia." Diz também: "Ninguém desculpa o anti-semitismo de Céline, mas meio século depois de sua morte já não se pode invocar automaticamente esse sentimento para rejeitar sua obra in totum." Tudo verdade, não há dúvida. Mas como dói! De um jeito ou de outro, no entanto, ela realizou verdadeira proeza. Que o confirmem os que já leram as suas traduções dos romances de Céline Viagem ao Fim da Noite e De Castelo em Castelo (ambos editados pela Companhia das Letras). Aliás, em relação a este último, chega a exclamar: "Foi o meu Everest!" Escreve: "O tradutor é um obcecado." E esta obsessão sente-se no decorrer de todo o livro-entrevista. Para ela, o tradutor é, sobretudo, um indivíduo que duvida e põe em questão tudo o que realiza. Enfim, sente-se que ela nos transmite neste livro uma elevada postura ética, uma dedicação integral à sua tarefa. Isto pode ser confirmado, por exemplo, pelo apêndice à sua tradução do romance De Castelo em Castelo. (Romance mesmo? A tendência atual à diluição das fronteiras entre os gêneros permite talvez chamá-lo assim.) Francamente, um leitor que não esteja bem a par do ambiente na França durante a Segunda Guerra Mundial e pouco depois não poderá orientar-se no livro sem esta ajuda da tradutora. Algumas de suas formulações resultam de um prolongado convívio com os textos traduzidos. Veja-se, por exemplo, o que diz sobre Viagem ao Fim da Noite. Ela o julgava impossível de traduzir, até se dar conta do seguinte: seu texto, "mais que língua popular, é língua oral, ou forma oral da língua". E assim ela o traduziu, incorporando à tradução a nossa oralidade. Em certo momento afirma: "Sou uma prática e não uma teórica da tradução." Ora, todo tradutor que escreve com inteligência e conhecimento de causa sobre o seu trabalho acaba trazendo uma contribuição teórica. E isso pode ser constatado no decorrer de todo este livro. Finalmente, já que estamos tratando dos paradoxos inerentes à tradução, lembremos o que ela diz com referência à compensação que o tradutor recebe geralmente pelo seu trabalho: "Em 2002, uma pesquisa feita na Espanha sobre os tradutores mostrou que essa é a profissão mais mal paga do mundo, levando-se em conta o trabalho exigido deles. O tradutor é um profissional altamente qualificado, tem de manejar à perfeição, no mínimo, dois idiomas, acumular os mais diversos conhecimentos. (...)Tanto trabalho em troca de quê? Às vezes tenho a impressão de praticar uma atividade clandestina: o reconhecimento intelectual e social do tradutor, embora crescente, ainda é modesto: é raríssimo que alguém, já não digo elogie, mas comente o seu trabalho. (...) A grande incógnita é por que gente tão preparada escolhe se dedicar à tradução literária, e não a atividades mais bem remuneradas. Não tenho resposta. No máximo uma pista." Se tudo isto é mais do que verdade, reconheçamos que, desta vez, com o seu instigante livro, Rosa Freire d'Aguiar merece não apenas comentário, mas uma verdadeira discussão, tal a importância dos tópicos por ela abordados.

Boris Schnaiderman é tradutor, escritor e crítico literário

sábado, novembro 12, 2005

Por uma poesia liberta do “eu” (entrevista com Paulo Henriques Britto)

Tradutor de Byron e Elizabeth Bishop, o poeta carioca Paulo Henriques Britto fala abaixo sobre as formas e o retorno ao sublime. Esta entrevista ele me concedeu mais ou menos um ano antes de receber o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2004

O carioca Paulo Henriques Britto, 52, dedica seu tempo à tradução e à poesia. Considerado um dos melhores tradutores do inglês em atividade no Brasil, já traduziu mais de uma centena de livros, entre eles, grande parte da obra da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop, num projeto que durou seis anos. Como poeta, sua produção é pequena, porém esmerada. São quatro livros nos quais firma-se com uma poesia liberta do “eu”, voltada para as coisas do mundo. Herdeiro do modernismo, paradoxalmente, valoriza a forma. “O poema para mim sempre foi algo mais sonoro do que visual, então eu naturalmente caminhei para o lado das formas fixas”, explica Britto, que também atua como professor na pós-graduação em lingüística da PUC-RJ. Ele esteve em Florianópolis ministrando um curso de tradução de poesia para os alunos da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesta entrevista, ele fala do atual momento da poesia e da prosa brasileiras e dos ofícios de poeta, tradutor e professor.

Pergunta - Você e alguns outros poetas brasileiros estão escrevendo poesia não mais em verso livre, mas buscando formas fixas. Explique sua escolha:

Paulo Henriques Britto - Há vários poetas da minha geração que estão trabalhando com formas tradicionais. De um lado é uma certa tendência e, de outro lado, se você analisar, verá que cada caso é um caso. O que há de geral nisso é o seguinte: o verso livre foi importantíssimo como fator de liberação no modernismo. Depois, houve o refluxo, que foi a geração de 45, e nova reação contra o neoparnasianismo da geração de 45, que foi a geração da poesia marginal, na qual o verso livre foi da maior importância, uma volta a Oswald de Andrade. Eu não participei do movimento, mas são pessoas da minha geração. Agora, de novo, como uma espécie de reação a esse excessivo informalismo, os poetas estão voltando a trabalhar com as formas. Então, de um lado, é uma tendência geral. Mas quando você vai comparar os poetas que estão trabalhando com formas fixas, verá que cada um foi levado a isso por um motivo diferente. Há uma corrente literariamente e esteticamente conservadora, na qual a forma fixa é uma maneira de enobrecer a poesia e que tem o discurso do sublime. O Ítalo Moriconi tem um artigo interessante sobre a volta do sublime. Os três casos mais típicos disso seriam o Ivan Junqueira, Bruno Tolentino, esteticamente o mais conservador, e o Alexei Bueno. Esse último é um caso mais problemático, pois também tem essa volta a uma dicção mais nobre, mas ao mesmo tempo tem uma produção importante em verso livre. Então, nesse primeiro grupo, a volta a forma fixa é uma rejeição ao modernismo.

Pergunta - E no seu caso?

Britto - Eu e Glauco Matoso, por exemplo, não somos antimodernistas. Nós dois chegamos às formas fixas por motivos completamente diferentes. O Matoso é de uma tendência fortemente construtivista, e do construtivismo para a forma fixa é um pulo. Aí ele ficou cego. Ele me disse que, como cego, a melhor maneira de decorar um poema é a forma do soneto. Ele escreveu mais de mil sonetos, uma produção imensa. Então juntou-se a esse lado construtivista a questão da cegueira. O meu caso é completamente diferente, vem de longa data. Eu comecei a escrever poesia mais a sério no final da adolescência, no final dos anos 60, em um momento em que tinham muita força no meio poético as tendências construtivistas. Havia os concretos, a poesia práxis, o poema-processo. E nessa época eu estava lendo freneticamente Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira e os poetas de língua inglesa. Eu li mais poesia de língua inglesa do que de língua portuguesa durante boa parte da minha vida. E os poetas que eu lia mais, produziam muito em formas fixas. Por mais que eu admirasse Álvaro de Campos, Whitman, que foi um poeta que eu li muito, eu tinha uma atração muito forte pelas formas fixas, e essa atração não tinha nada a ver com uma volta ao sublime. Nada disso. Eu sentia uma certa necessidade de uma disciplina, mental até. Muita gente precisava disso, mas as pessoas encontravam essa disciplina no concretismo. Eu nunca me interessei muito pelo lado visual. O poema para mim sempre foi algo mais sonoro do que visual. Então eu naturalmente caminhei para o lado das formas fixas. Mas eu sempre me mantive muito próximo de uma concepção de poesia modernista, alguma coisa de dessublimização, de enfatizar o cotidiano, um certo elogio do “pé-no-chão”, do concreto, do real. Por isso, no meu caso, o sublime não tem nada a ver com o uso de formas fixas.

Pergunta - Você recebeu alguns prêmios. Você considera os prêmios e os concursos importantes para fomentar a criação literária?

Britto - Eu recebi um prêmio de tradução e outro de poesia. Essas coisas são muito boas, veja o caso dos Estados Unidos, onde há uma pluralidade imensa de prêmios literários. Os grandes prêmios, como o Pulitzer, são poucos, mas há muitos prêmios pequenos que permitem que você viva de seis meses a um ano. Esses prêmios têm a vantagem de permitir que a pessoa se dedique à poesia mesmo. Então, o que ocorre nos Estados Unidos é que se você é um poeta relativamente talentoso, você fica sendo escritor em residência numa faculdade, dá um curso de versificação poética em outra, recebe um prêmio que te segura por um ano, tempo para você fechar um livro, se dedicar só à escrita. Isso permite uma certa profissionalização do escritor ou do poeta. Isso é mais importante para o poeta do que para os outros escritores porque o livro do poeta não vai vender nunca. O romancista não só vende mais, como também pode eventualmente vender um livro para o cinema, para a televisão. O produto do poeta é absolutamente sem valor econômico. No Brasil, isso não é viável ainda, mas esses prêmios que estão surgindo agora são um passo no caminho correto, no sentido de que não adianta você ter apenas um prêmio de US$ 1 milhão, é preciso ter vários prêmios menores.

Pergunta – Fale um pouco da experiência de traduzir e mergulhar na vida de Elizabeth Bishop.

Britto – Eu traduzi a sério, mesmo três poetas: Wallace Stevens, Byron e Elizabeth Bishop. Foram os três projetos de tradução de poesia em que eu fui mais fundo. E dos três, o que eu fui mais fundo foi o projeto da Bishop, porque eu não apenas fiz uma antologia pegando quase metade do corpus da poesia dela, como também traduzi a prosa e as cartas dela. Foi uma coisa que eu nunca tinha feito em minha vida, um projeto de pesquisa sério. Quando eu percebi, estava me tornando um entendido em Elizabeth Bishop. Fiquei mais ou menos seis anos imerso nesse projeto.

Pergunta - E quanto ao Byron?

Britto – Com Byron foi diferente. Eu traduzi apenas um poema dele, um poema longo, mas que também me ocupou durante anos e me obrigou a ler a obra toda dele. Foi também muito interessante. Mas foi uma iniciativa minha, que fiz nas horas vagas. No caso da Bishop, foi interessante porque eu fui remunerado. A editora comprou o pacote da obra completa dela para lançar no Brasil as cartas, a prosa e uma seleção das poesias dela.

Pergunta - Você é tradutor exclusivo da Companhia das Letras?

Britto – Não, sou free-lancer, desde que a editora abriu em 1986. O primeiro livro de sucesso deles fui eu quem traduziu. Temos uma relação muito boa, mas de vez em quando faço um livro para outra editora, às vezes traduzo livros brasileiros para serem editados nos Estados Unidos. Vai sair agora a minha tradução de William Faulkner, de O som e a fúria, que fiz para a Cosac & Naify.

Pergunta – Você assimilou alguma característica da poesia de Byron e de Bishop em sua criação?

Britto – Esses poetas em que eu mergulhei, todos deixaram uma certa marca. O Wallace Stevens foi talvez o que deixou marcas mais fundas porque eu o li quando ainda estava em formação. Descobri a poesia dele quando eu estava com 23, 24 anos e estava escrevendo os poemas que saíram no meu primeiro livro, de 1982. Dele peguei duas coisas importantes: um certo olhar filosófico, uma poesia muito pensante, de caráter introspectivo, e uma coisa meio objetiva, liberta do eu, porque o Fernando Pessoa, que foi minha leitura básica, reforçou um lado muito autocentrado, algo que todo adolescente tem, de esmiuçar o eu. O que eu gostei do Stevens é que ele voltava seu olhar filosófico para outras coisas, para o mundo, para a arte, para os objetos. Para mim, isso foi muito bom porque me obrigou a sair um pouco do “eu”.

Pergunta - Sua poesia fala do mundo, das coisas...

Britto– Sim, e nisso o Byron foi fundamental para mim. Com ele aprendi duas coisas: uma foi lidar com formas fixas de uma maneira mais disciplinada, a outra tem a ver com a sua personalidade voltada para o “aqui e agora”. O poema dele que traduzi tem um fiapo de história, uma bobagem, mas cheia de digressões, que são o mais interessante. Ele fala mal da Itália, da Inglaterra, dos amigos, dos inimigos. E essa coisa meio superficial e dispersiva dele foi boa para me puxar para a realidade. Por outro lado, a Bishop eu traduzi quando já estava com meu estilo poético já mais ou menos definido, então o impacto da obra dela na minha poesia foi menor, mas ela trabalha muito bem com a forma e reforçou isso em mim.

Pergunta – Em teu trabalho como tradutor, você se preocupa em influenciar o ambiente cultural?

Britto – Uma das coisas que me levaram a traduzir o Byron foi a idéia de que a poesia brasileira estava precisando de um banho de objetividade. Eu não agüentava mais essa coisa de poema sobre o poema, poema sobre a leitura, sobre a impossibilidade de escrever poemas. Essas coisas cansam, caem numa certa esterilidade. Eu fiquei impressionado com o fato de o Byron fazer poesia e estar ligado no mundo. Isso me interessava na medida em que a poesia estava se descolando muito do resto do mundo.

Pergunta – Enquanto professor e ensaísta de tradução, percebe-se sua crítica às teorias pós-modernas, em especial, à desconstrução.

Britto –Eu não me considero de modo algum um teórico da tradução. Não tenho grande interesse por teoria da tradução, meu interesse é pela prática, ensino e avaliação de traduções. Eu acabei sendo levado a ler a refletir sobre aspectos teóricos e me interessou o fato de que no Brasil, num determinado momento, estavam tendo grande impacto nos meios acadêmicos teorias que à primeira vista pareciam apontar para uma completa aporia, para um beco sem saída para a prática da tradução. Eu me convenci de que essas teorias levavam a um impasse completo. Então tenho tematizado sobre esse divórcio crescente entre a prática e a teoria da tradução. Como você vê, tem uma certa lógica nas minhas preocupações. Já há algo de bizantino em discutir questões teóricas que vêm do tempo de Cícero; mas pior que não chegar a conclusão nenhuma é tentar provar por A mais B que não se pode chegar a conclusão nenhuma, que estamos irremediavelmente presos à nossa própria subjetividade, que não se pode dizer nada sobre nada; isso me parecia uma coisa bastante prejudicial. Minha formação é muito anglo-saxônica, logicista, tenho uma preocupação grande com a realidade. Para mim, a função da teoria deve ser esclarecer, orientar intervenções sobre a realidade. Daí essa minha incursão pela teoria, que está se tornando algo mais profundo na medida em que agora estou trabalhando em um projeto de pós-graduação de tradução. Isso me levou de novo a refazer meu compromisso com uma visão muito terra-a-terra. Para mim, a teoria da tradução deve servir acima de tudo para fundamentar a avaliação de traduções, critérios para julgar e ensinar melhor a prática de tradução.

Pergunta - Fale um pouco sobre o seu método de avaliação de tradução de poesia.

Britto – É algo que estou desenvolvendo agora. Não é nada de revolucionário, é uma coisa bastante prática: tentar fazer uma análise do que você acha que são os elementos relevantes em determinado poema, atribuir um peso relativo a eles, determinando o que é essencial e o que não é tão importante. Na hora de traduzir, deve-se tentar recriar em português aqueles elementos que pareceram, à luz da análise, os mais relevantes. No mais, é uma prática em que entra muito bom-senso, muita lição de recriação de forma que eu aprendi com as traduções dos irmãos Campos, que foram a “universidade” de tradução que eu fiz. Eu não sou formado em tradução, minha formação é em lingüística, mas aprendi muito lendo as traduções e os paratextos principalmente do Augusto de Campos. Resumindo, estou tentando encontrar parâmetros que nos ajudem a dizer que a tradução A de determinado poema é melhor do que a tradução B.

Pergunta - E o que você busca quando traduz prosa?

Britto – Eu busco todas aquelas coisas que tradicionalmente todos os tradutores buscam, por mais que os teóricos esperneiem. Busco uma tradução fiel ao original, busco recriar em português os efeitos estilísticos do original e tento, na medida do possível, me tornar transparente ou invisível, colocando o mínimo de mim nos livros que traduzo. O lugar para eu me colocar como tradutor é o paratexto, a introdução, as notas, o posfácio. E o lugar para eu me afirmar como escritor é a minha poesia. No momento em que estou traduzindo, estou interessado em recriar em português, da melhor maneira possível, o que eu acho que sejam os valores estéticos do original. É a mesma coisa que eu faço na tradução de poesia. A única vantagem de trabalhar com poesia é que tudo é muito concentrado. Num textinho de dez ou quinze versos, os problemas são muito mais críticos. O texto poético tem inúmeros níveis, mais do que a prosa mais refinada. Mas tudo que estou propondo para a avaliação de poesia pode, mutatis mutandis, ser aplicado na prosa.

Pergunta – Como você avalia o atual momento literário brasileiro?

Britto - Acho que estamos num momento poético muito fértil, temos muitos nomes bons na poesia. Há também muitos autores ótimos de ficção. Temos uma nova geração de escritores bastante interessantes. Pessoas na faixa dos 40 anos que são escritores de primeira qualidade, como Rubens Figueiredo, Milton Hatoum e Bernardo Carvalho, cujos trabalhos costumo acompanhar. Em poesia, poderia citar no Rio de Janeiro o Carlito Azevedo e a Cláudia Roquette-Pinto; de uma geração um pouco mais velha, há o Armando Freitas Filho. Há também muita gente boa em São Paulo, como o Nelson Ascher, que também é um excelente tradutor de poesia. No Nordeste há vários bons poetas, como Ruy Espinheira Filho e Adriano Espínola. São os nomes que me ocorrem agora, mas eu poderia citar muitos outros. Enfim, há um nível muito bom de produção poética no Brasil.

(Publicado no Diário Catarinense em 3/4/2004, páginas 14 e 15 do DC Cultura)