sábado, novembro 12, 2005

Por uma poesia liberta do “eu” (entrevista com Paulo Henriques Britto)

Tradutor de Byron e Elizabeth Bishop, o poeta carioca Paulo Henriques Britto fala abaixo sobre as formas e o retorno ao sublime. Esta entrevista ele me concedeu mais ou menos um ano antes de receber o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira de 2004

O carioca Paulo Henriques Britto, 52, dedica seu tempo à tradução e à poesia. Considerado um dos melhores tradutores do inglês em atividade no Brasil, já traduziu mais de uma centena de livros, entre eles, grande parte da obra da poetisa norte-americana Elizabeth Bishop, num projeto que durou seis anos. Como poeta, sua produção é pequena, porém esmerada. São quatro livros nos quais firma-se com uma poesia liberta do “eu”, voltada para as coisas do mundo. Herdeiro do modernismo, paradoxalmente, valoriza a forma. “O poema para mim sempre foi algo mais sonoro do que visual, então eu naturalmente caminhei para o lado das formas fixas”, explica Britto, que também atua como professor na pós-graduação em lingüística da PUC-RJ. Ele esteve em Florianópolis ministrando um curso de tradução de poesia para os alunos da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. Nesta entrevista, ele fala do atual momento da poesia e da prosa brasileiras e dos ofícios de poeta, tradutor e professor.

Pergunta - Você e alguns outros poetas brasileiros estão escrevendo poesia não mais em verso livre, mas buscando formas fixas. Explique sua escolha:

Paulo Henriques Britto - Há vários poetas da minha geração que estão trabalhando com formas tradicionais. De um lado é uma certa tendência e, de outro lado, se você analisar, verá que cada caso é um caso. O que há de geral nisso é o seguinte: o verso livre foi importantíssimo como fator de liberação no modernismo. Depois, houve o refluxo, que foi a geração de 45, e nova reação contra o neoparnasianismo da geração de 45, que foi a geração da poesia marginal, na qual o verso livre foi da maior importância, uma volta a Oswald de Andrade. Eu não participei do movimento, mas são pessoas da minha geração. Agora, de novo, como uma espécie de reação a esse excessivo informalismo, os poetas estão voltando a trabalhar com as formas. Então, de um lado, é uma tendência geral. Mas quando você vai comparar os poetas que estão trabalhando com formas fixas, verá que cada um foi levado a isso por um motivo diferente. Há uma corrente literariamente e esteticamente conservadora, na qual a forma fixa é uma maneira de enobrecer a poesia e que tem o discurso do sublime. O Ítalo Moriconi tem um artigo interessante sobre a volta do sublime. Os três casos mais típicos disso seriam o Ivan Junqueira, Bruno Tolentino, esteticamente o mais conservador, e o Alexei Bueno. Esse último é um caso mais problemático, pois também tem essa volta a uma dicção mais nobre, mas ao mesmo tempo tem uma produção importante em verso livre. Então, nesse primeiro grupo, a volta a forma fixa é uma rejeição ao modernismo.

Pergunta - E no seu caso?

Britto - Eu e Glauco Matoso, por exemplo, não somos antimodernistas. Nós dois chegamos às formas fixas por motivos completamente diferentes. O Matoso é de uma tendência fortemente construtivista, e do construtivismo para a forma fixa é um pulo. Aí ele ficou cego. Ele me disse que, como cego, a melhor maneira de decorar um poema é a forma do soneto. Ele escreveu mais de mil sonetos, uma produção imensa. Então juntou-se a esse lado construtivista a questão da cegueira. O meu caso é completamente diferente, vem de longa data. Eu comecei a escrever poesia mais a sério no final da adolescência, no final dos anos 60, em um momento em que tinham muita força no meio poético as tendências construtivistas. Havia os concretos, a poesia práxis, o poema-processo. E nessa época eu estava lendo freneticamente Fernando Pessoa, Drummond, Manuel Bandeira e os poetas de língua inglesa. Eu li mais poesia de língua inglesa do que de língua portuguesa durante boa parte da minha vida. E os poetas que eu lia mais, produziam muito em formas fixas. Por mais que eu admirasse Álvaro de Campos, Whitman, que foi um poeta que eu li muito, eu tinha uma atração muito forte pelas formas fixas, e essa atração não tinha nada a ver com uma volta ao sublime. Nada disso. Eu sentia uma certa necessidade de uma disciplina, mental até. Muita gente precisava disso, mas as pessoas encontravam essa disciplina no concretismo. Eu nunca me interessei muito pelo lado visual. O poema para mim sempre foi algo mais sonoro do que visual. Então eu naturalmente caminhei para o lado das formas fixas. Mas eu sempre me mantive muito próximo de uma concepção de poesia modernista, alguma coisa de dessublimização, de enfatizar o cotidiano, um certo elogio do “pé-no-chão”, do concreto, do real. Por isso, no meu caso, o sublime não tem nada a ver com o uso de formas fixas.

Pergunta - Você recebeu alguns prêmios. Você considera os prêmios e os concursos importantes para fomentar a criação literária?

Britto - Eu recebi um prêmio de tradução e outro de poesia. Essas coisas são muito boas, veja o caso dos Estados Unidos, onde há uma pluralidade imensa de prêmios literários. Os grandes prêmios, como o Pulitzer, são poucos, mas há muitos prêmios pequenos que permitem que você viva de seis meses a um ano. Esses prêmios têm a vantagem de permitir que a pessoa se dedique à poesia mesmo. Então, o que ocorre nos Estados Unidos é que se você é um poeta relativamente talentoso, você fica sendo escritor em residência numa faculdade, dá um curso de versificação poética em outra, recebe um prêmio que te segura por um ano, tempo para você fechar um livro, se dedicar só à escrita. Isso permite uma certa profissionalização do escritor ou do poeta. Isso é mais importante para o poeta do que para os outros escritores porque o livro do poeta não vai vender nunca. O romancista não só vende mais, como também pode eventualmente vender um livro para o cinema, para a televisão. O produto do poeta é absolutamente sem valor econômico. No Brasil, isso não é viável ainda, mas esses prêmios que estão surgindo agora são um passo no caminho correto, no sentido de que não adianta você ter apenas um prêmio de US$ 1 milhão, é preciso ter vários prêmios menores.

Pergunta – Fale um pouco da experiência de traduzir e mergulhar na vida de Elizabeth Bishop.

Britto – Eu traduzi a sério, mesmo três poetas: Wallace Stevens, Byron e Elizabeth Bishop. Foram os três projetos de tradução de poesia em que eu fui mais fundo. E dos três, o que eu fui mais fundo foi o projeto da Bishop, porque eu não apenas fiz uma antologia pegando quase metade do corpus da poesia dela, como também traduzi a prosa e as cartas dela. Foi uma coisa que eu nunca tinha feito em minha vida, um projeto de pesquisa sério. Quando eu percebi, estava me tornando um entendido em Elizabeth Bishop. Fiquei mais ou menos seis anos imerso nesse projeto.

Pergunta - E quanto ao Byron?

Britto – Com Byron foi diferente. Eu traduzi apenas um poema dele, um poema longo, mas que também me ocupou durante anos e me obrigou a ler a obra toda dele. Foi também muito interessante. Mas foi uma iniciativa minha, que fiz nas horas vagas. No caso da Bishop, foi interessante porque eu fui remunerado. A editora comprou o pacote da obra completa dela para lançar no Brasil as cartas, a prosa e uma seleção das poesias dela.

Pergunta - Você é tradutor exclusivo da Companhia das Letras?

Britto – Não, sou free-lancer, desde que a editora abriu em 1986. O primeiro livro de sucesso deles fui eu quem traduziu. Temos uma relação muito boa, mas de vez em quando faço um livro para outra editora, às vezes traduzo livros brasileiros para serem editados nos Estados Unidos. Vai sair agora a minha tradução de William Faulkner, de O som e a fúria, que fiz para a Cosac & Naify.

Pergunta – Você assimilou alguma característica da poesia de Byron e de Bishop em sua criação?

Britto – Esses poetas em que eu mergulhei, todos deixaram uma certa marca. O Wallace Stevens foi talvez o que deixou marcas mais fundas porque eu o li quando ainda estava em formação. Descobri a poesia dele quando eu estava com 23, 24 anos e estava escrevendo os poemas que saíram no meu primeiro livro, de 1982. Dele peguei duas coisas importantes: um certo olhar filosófico, uma poesia muito pensante, de caráter introspectivo, e uma coisa meio objetiva, liberta do eu, porque o Fernando Pessoa, que foi minha leitura básica, reforçou um lado muito autocentrado, algo que todo adolescente tem, de esmiuçar o eu. O que eu gostei do Stevens é que ele voltava seu olhar filosófico para outras coisas, para o mundo, para a arte, para os objetos. Para mim, isso foi muito bom porque me obrigou a sair um pouco do “eu”.

Pergunta - Sua poesia fala do mundo, das coisas...

Britto– Sim, e nisso o Byron foi fundamental para mim. Com ele aprendi duas coisas: uma foi lidar com formas fixas de uma maneira mais disciplinada, a outra tem a ver com a sua personalidade voltada para o “aqui e agora”. O poema dele que traduzi tem um fiapo de história, uma bobagem, mas cheia de digressões, que são o mais interessante. Ele fala mal da Itália, da Inglaterra, dos amigos, dos inimigos. E essa coisa meio superficial e dispersiva dele foi boa para me puxar para a realidade. Por outro lado, a Bishop eu traduzi quando já estava com meu estilo poético já mais ou menos definido, então o impacto da obra dela na minha poesia foi menor, mas ela trabalha muito bem com a forma e reforçou isso em mim.

Pergunta – Em teu trabalho como tradutor, você se preocupa em influenciar o ambiente cultural?

Britto – Uma das coisas que me levaram a traduzir o Byron foi a idéia de que a poesia brasileira estava precisando de um banho de objetividade. Eu não agüentava mais essa coisa de poema sobre o poema, poema sobre a leitura, sobre a impossibilidade de escrever poemas. Essas coisas cansam, caem numa certa esterilidade. Eu fiquei impressionado com o fato de o Byron fazer poesia e estar ligado no mundo. Isso me interessava na medida em que a poesia estava se descolando muito do resto do mundo.

Pergunta – Enquanto professor e ensaísta de tradução, percebe-se sua crítica às teorias pós-modernas, em especial, à desconstrução.

Britto –Eu não me considero de modo algum um teórico da tradução. Não tenho grande interesse por teoria da tradução, meu interesse é pela prática, ensino e avaliação de traduções. Eu acabei sendo levado a ler a refletir sobre aspectos teóricos e me interessou o fato de que no Brasil, num determinado momento, estavam tendo grande impacto nos meios acadêmicos teorias que à primeira vista pareciam apontar para uma completa aporia, para um beco sem saída para a prática da tradução. Eu me convenci de que essas teorias levavam a um impasse completo. Então tenho tematizado sobre esse divórcio crescente entre a prática e a teoria da tradução. Como você vê, tem uma certa lógica nas minhas preocupações. Já há algo de bizantino em discutir questões teóricas que vêm do tempo de Cícero; mas pior que não chegar a conclusão nenhuma é tentar provar por A mais B que não se pode chegar a conclusão nenhuma, que estamos irremediavelmente presos à nossa própria subjetividade, que não se pode dizer nada sobre nada; isso me parecia uma coisa bastante prejudicial. Minha formação é muito anglo-saxônica, logicista, tenho uma preocupação grande com a realidade. Para mim, a função da teoria deve ser esclarecer, orientar intervenções sobre a realidade. Daí essa minha incursão pela teoria, que está se tornando algo mais profundo na medida em que agora estou trabalhando em um projeto de pós-graduação de tradução. Isso me levou de novo a refazer meu compromisso com uma visão muito terra-a-terra. Para mim, a teoria da tradução deve servir acima de tudo para fundamentar a avaliação de traduções, critérios para julgar e ensinar melhor a prática de tradução.

Pergunta - Fale um pouco sobre o seu método de avaliação de tradução de poesia.

Britto – É algo que estou desenvolvendo agora. Não é nada de revolucionário, é uma coisa bastante prática: tentar fazer uma análise do que você acha que são os elementos relevantes em determinado poema, atribuir um peso relativo a eles, determinando o que é essencial e o que não é tão importante. Na hora de traduzir, deve-se tentar recriar em português aqueles elementos que pareceram, à luz da análise, os mais relevantes. No mais, é uma prática em que entra muito bom-senso, muita lição de recriação de forma que eu aprendi com as traduções dos irmãos Campos, que foram a “universidade” de tradução que eu fiz. Eu não sou formado em tradução, minha formação é em lingüística, mas aprendi muito lendo as traduções e os paratextos principalmente do Augusto de Campos. Resumindo, estou tentando encontrar parâmetros que nos ajudem a dizer que a tradução A de determinado poema é melhor do que a tradução B.

Pergunta - E o que você busca quando traduz prosa?

Britto – Eu busco todas aquelas coisas que tradicionalmente todos os tradutores buscam, por mais que os teóricos esperneiem. Busco uma tradução fiel ao original, busco recriar em português os efeitos estilísticos do original e tento, na medida do possível, me tornar transparente ou invisível, colocando o mínimo de mim nos livros que traduzo. O lugar para eu me colocar como tradutor é o paratexto, a introdução, as notas, o posfácio. E o lugar para eu me afirmar como escritor é a minha poesia. No momento em que estou traduzindo, estou interessado em recriar em português, da melhor maneira possível, o que eu acho que sejam os valores estéticos do original. É a mesma coisa que eu faço na tradução de poesia. A única vantagem de trabalhar com poesia é que tudo é muito concentrado. Num textinho de dez ou quinze versos, os problemas são muito mais críticos. O texto poético tem inúmeros níveis, mais do que a prosa mais refinada. Mas tudo que estou propondo para a avaliação de poesia pode, mutatis mutandis, ser aplicado na prosa.

Pergunta – Como você avalia o atual momento literário brasileiro?

Britto - Acho que estamos num momento poético muito fértil, temos muitos nomes bons na poesia. Há também muitos autores ótimos de ficção. Temos uma nova geração de escritores bastante interessantes. Pessoas na faixa dos 40 anos que são escritores de primeira qualidade, como Rubens Figueiredo, Milton Hatoum e Bernardo Carvalho, cujos trabalhos costumo acompanhar. Em poesia, poderia citar no Rio de Janeiro o Carlito Azevedo e a Cláudia Roquette-Pinto; de uma geração um pouco mais velha, há o Armando Freitas Filho. Há também muita gente boa em São Paulo, como o Nelson Ascher, que também é um excelente tradutor de poesia. No Nordeste há vários bons poetas, como Ruy Espinheira Filho e Adriano Espínola. São os nomes que me ocorrem agora, mas eu poderia citar muitos outros. Enfim, há um nível muito bom de produção poética no Brasil.

(Publicado no Diário Catarinense em 3/4/2004, páginas 14 e 15 do DC Cultura)

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