terça-feira, junho 24, 2014

Felisberto Hernández: a vida de um concertista de província

 * Por Marlova Aseff

As freqüentes viagens do escritor uruguaio Felisberto Hernández (1902-1964) pelas cidadezinhas do interior do Uruguai e da Argentina formaram a matéria da experiência que esse pianista-escritor levaria para a maioria das suas narrativas. Impossível não lembrar Walter Benjamin, para quem havia dois tipos arquetípicos de narradores: o sedentário, representado pelo camponês, e o marinheiro-comerciante. Pois Felisberto Hernández é dessa segunda estirpe: um navegador que percorria o pampa uruguaio e argentino – cuja planície foi muitas vezes comparada à vastidão do mar – e aportava em lugarejos onde recolheu o substrato de sua original literatura.
Mais conhecido em seu tempo como pianista do que como escritor, o uruguaio era ao mesmo tempo galante (teve várias mulheres) e glutão (de tão gordo, quando morreu, seu caixão teve de ser retirado pela janela do prédio). Esteve fora do cânone literário de seu país durante quase toda sua vida. Conforme estudo realizado por Alejandro Gortázar na Universidad de La República (Uruguai)[1], sua literatura apareceu pela primeira vez em uma antologia do conto daquele país somente em 1962, dois anos antes de sua morte. Talvez a explicação para esse fato resida em dois fatores que não se excluem: por um lado, a originalidade de seu estilo retardou o reconhecimento de sua obra por parte da crítica. Por outro, seus estranhos relatos necessitam de um público leitor que esteja disposto a renunciar ao linear.
Na década de 70, escritores como Italo Calvino e Julio Cortázar escreveram prólogos elogiosos para traduções para o italiano (1974) e o francês (1975). Em 1977, um grupo de estudiosos do Centro de Investigaciones Latinoamericanas da Universidade de Poitiers publicou uma série de estudos dedicados à obra de Felisberto Hernández[2]. No entanto, as primeiras críticas foram divulgadas pela equipe do lendário semanário uruguaio Marcha. Nessa publicação, críticos como Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal, Mario Benedetti e José Pedro Díaz, entre outros, fizeram suas apreciações (nem todas positivas) sobre a produção literária de Felisberto.
Para Calvino, Hernández “não se parece com nenhum outro escritor”. Para Cortázar, a obra do uruguaio “não responde a influências perceptíveis”. Sua produção já foi considerada literatura imaginativa, fantástica, surrealista. Essa última denominação foi criticada por Cortázar, que acusava a crítica de, por não saber como enquadrar a obra, “tirar da cartola o grande coelho branco chamado surrealismo”.
Pablo Rocca, professor da Universidad de La República (Uruguai), chama a atenção para o rico contexto de tensões no qual se formou a literatura de Hernández, como: campo e cidade, vanguarda e criollismo, realismo e formas do fantástico, modernização e conservadorismo. A temática insólita dos contos, segundo Cortázar, alia o cotidiano ao excepcional a ponto de mostrar que podem ser a mesma coisa.  Além disso, em seus textos aparecem o registro coloquial (uma raridade na época) e um humor sutil e melancólico.
A obra de Felisberto Hernández divide-se naturalmente em três períodos com características diferentes. De 1925 a 1931, época em que inicia sua criação literária e lança pequenos livros sem expressão: Fulano de tal (1925), Libro sin tapas (1929), La cara de Ana (1930) e La envenenada (1931). A  partir de 1942, começa a segunda fase, quando publica relatos mais extensos nos quais privilegia a memória e a evocação. Pertencem a esse período Por los tiempos de Clemente Colling, El caballo perdido e Tierras de la memoria (publicado postumamente). O terceiro e último período é representado pelo conjunto de seus contos: Nadie encendía las lámparas (1947), Las hortensias (1949) e La Casa Inundada (1960).

Traduções brasileiras:
O cavalo perdido e outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Tradução de Davi Arrigucci Jr.
As hortensias/Las hortensias. São Paulo: Grua, 2012 (edição bilíngue).  Tradução de Pablo Cardellino Soto e Walter Carlos Costa.







[1] Ver artigo do autor na revista Fragmentos, nº 19, pp 31-45.
[2] Trata-se da obra Felisberto Hernández ante la crítica actual.

sexta-feira, abril 11, 2014



Otília tinha toda uma teoria sobre o que o bordado poderia ensinar às pessoas. Ou melhor dizendo, às mulheres, uma vez que os homens não costumavam bordar.  Por exemplo, ela  dizia que a  beleza de uma coisa era diretamente proporcional à falta de pressa com que havia sido feita. Isso valia igualmente para uma receita de bolo, uma refeição, para a amizade ou para o  amor. Também falava que era melhor consertar um erro logo que ele acontece, pois depois se tornava muito mais difícil voltar atrás, e raramente isso era feito sem deixar marcas no “bordado”. Havia também a questão da escolha das cores (o contraste certo poderia ressaltar todo o potencial de beleza de um determinado tom) e da tensão com que devíamos fazer os pontos (nem frouxo demais, nem apertado demais).
E os arremates? Os arremates, ela pensava, eram a prova de que era preciso também cuidar das coisas que não são visíveis, pois elas, embora não sejam evidentes, podem ser sentidas, estão presentes de alguma forma e atestam a integridade da “coisa” em questão. E chamava a atenção para nunca descuidarmos dos fiapos soltos: parecem inofensivos, mas podem acabar com a sua paz.

sábado, fevereiro 08, 2014

Frente fria


  Marlova Aseff

Um temporal se forma quando uma frente fria avança, do Sul em direção ao Norte, até se chocar com uma massa de ar quente. A esse violento encontro da natureza também chamamos de tempestade ou tormenta. São dois movimentos opostos, como dois desejos em combate.


Estavam em meados de abril e os dias continuavam quentes e abafados. Ao acordar, Teresa tinha sempre a esperança de ver nuvens no céu ou de, ao menos, sentir uma  leve brisa que pudesse anunciar chuva. Mas não. O tempo  passava e o céu amanhecia, dia após dia, de um azul pleno, iluminando a  vastidão da planície. O sol,  onipresença tórrida, sugava as energias de todos os seres. Homens, gado, cachorros, gatos e até os pássaros procuravam uma sombra para escapar do mormaço. O calor obrigava Teresa a cumprir as lides da primeira hora da manhã com certa pressa. Levantava antes das cinco, e o sol não tardava em arder mais e mais forte, tornando fatigante o trabalho caseiro. Isso a incomodava de maneira particular, pois alterava a rotina lenta e metódica com que estava acostumada a levar o tempo, num ritual repetitivo, mas que a ajudava a preencher os dias. Ela observava o calor impelindo o pasto a se retorcer, travando uma luta inútil  para não ressecar por inteiro; sentia a sola dos pés queimarem a ponto de ter de  procurar uma laje que ainda se mantivesse fria para plantá-los ali por alguns momentos.
Mais uma semana de sol e pequenas trombadas de chuva que de nada serviam e o poço, que havia resistido por todo o verão, começava a secar. O homem da casa recomendou que não fossem mais lavadas as roupas, nem as lajes. Era preciso poupar água.   Com menos serviço, ela  agora tinha tempo para sentar-se à sombra dos cinamomos e  jogar pensamentos fora enquanto esvaziava as glândulas de tanto suar. Atirada sob as árvores, pensava em como o verão lhe era especialmente cruel. Havia lhe tirado os últimos prazeres que  tinha, como o gosto pelo mate amargo da manhã. Sorver o líquido quente a fazia arder ainda mais.
Depois de limpar a casa,  o final da manhã era o próprio inferno. Ficava junto ao fogão para preparar o almoço dos homens e os vapores ferventes das panelas a envolviam até a náusea. A hora da sesta tampouco trazia alívio, pois o sono era pesado e a levava a pesadelos diurnos que eram sempre mais terríveis do que os da noite. Mesmo assim, era preciso escapar do escaldante sol da uma hora da tarde abrigando-se na penumbra dos quartos da casa, sentir o cheiro das coisas velhas, olhar entediadamente para o teto de madeira e as suas  teias de aranha ou para os móveis quietos da casa.  Nessas horas arrastadas, ouvia o galo cantar longe dali, a quietude revelava o rangido das madeiras do assoalho, a respiração dos ocupantes dos outros cômodos. Mantinha-se nesse exercício de escutar até o chão ressonar com o trote manso dos peões em seus cavalos, rumo ao campo para a jornada da tarde. Nunca sabia se tinha de fato dormido ou se ficara todo o tempo a decifrar os sons da casa. Uma pequena redenção era a chegada da noite. O céu cobria-se de alaranjados e rosas, os animais recolhiam-se e a noite avançava lentamente. Por alguns minutos, o esperado alívio. Da janela do banheiro, lavando-se com a água fresca do poço, via a lua, imensa, nascendo vermelha. Mesmo bela, era um sinal de que o calor permaneceria.  Neste momento, o desânimo a devorava. Era o fim de mais um dia.
Em uma dessas noites, com as coxas grudadas de suor e a nuca encharcada, entrelaçou ideias desordenadas e repetitivas sobre quando a estação ingrata haveria de acabar. Doeu-lhe profundamente não poder contar com o refúgio imaginário dos dias frios. Ficar sob as cobertas pesadas enquanto não era hora de levantar, consolada pelo cinza chumbo do  inverno, imóvel, como num canto de si mesma. Sentia-se mais viva nos dias de vento forte, frio e revoltoso.  Pensou em como, todos os anos, ansiava pela chegada do inverno, quando o rádio alertava a aproximação das  frentes frias, que inevitavelmente formavam violentas tempestades.  Nunca desejara tanto ver uma tormenta se armando no horizonte.
De madrugada, Teresa acordou ouvindo a janela do quarto que batia forte. Nuvens de poeira invadiram a peça, banhando-a de translúcidas partículas que se colaram ao corpo ainda úmido de suor. Saiu correndo e, afoita, olhou para o céu e viu nuvens avançando ágeis sobre a sua cabeça. Enfim a tormenta viria. O vento sacudia os eucaliptos e carregava folhas soltas em pequenos redemoinhos que a envolviam enquanto girava, só e desvairada, no pátio da casa. Sentiu prazer em cada trovoada, em cada relâmpago que atravessava o breu e esperou avidamente pelas primeiras gotas de chuva.
 Mas as gotas não caíram. O mesmo vento que trazia a chuva, carregou-a para longe. Teresa voltou a seu quarto. A madrugada corria solta e nenhum sopro de brisa adentrava a janela.