sábado, fevereiro 08, 2014

Frente fria


  Marlova Aseff

Um temporal se forma quando uma frente fria avança, do Sul em direção ao Norte, até se chocar com uma massa de ar quente. A esse violento encontro da natureza também chamamos de tempestade ou tormenta. São dois movimentos opostos, como dois desejos em combate.


Estavam em meados de abril e os dias continuavam quentes e abafados. Ao acordar, Teresa tinha sempre a esperança de ver nuvens no céu ou de, ao menos, sentir uma  leve brisa que pudesse anunciar chuva. Mas não. O tempo  passava e o céu amanhecia, dia após dia, de um azul pleno, iluminando a  vastidão da planície. O sol,  onipresença tórrida, sugava as energias de todos os seres. Homens, gado, cachorros, gatos e até os pássaros procuravam uma sombra para escapar do mormaço. O calor obrigava Teresa a cumprir as lides da primeira hora da manhã com certa pressa. Levantava antes das cinco, e o sol não tardava em arder mais e mais forte, tornando fatigante o trabalho caseiro. Isso a incomodava de maneira particular, pois alterava a rotina lenta e metódica com que estava acostumada a levar o tempo, num ritual repetitivo, mas que a ajudava a preencher os dias. Ela observava o calor impelindo o pasto a se retorcer, travando uma luta inútil  para não ressecar por inteiro; sentia a sola dos pés queimarem a ponto de ter de  procurar uma laje que ainda se mantivesse fria para plantá-los ali por alguns momentos.
Mais uma semana de sol e pequenas trombadas de chuva que de nada serviam e o poço, que havia resistido por todo o verão, começava a secar. O homem da casa recomendou que não fossem mais lavadas as roupas, nem as lajes. Era preciso poupar água.   Com menos serviço, ela  agora tinha tempo para sentar-se à sombra dos cinamomos e  jogar pensamentos fora enquanto esvaziava as glândulas de tanto suar. Atirada sob as árvores, pensava em como o verão lhe era especialmente cruel. Havia lhe tirado os últimos prazeres que  tinha, como o gosto pelo mate amargo da manhã. Sorver o líquido quente a fazia arder ainda mais.
Depois de limpar a casa,  o final da manhã era o próprio inferno. Ficava junto ao fogão para preparar o almoço dos homens e os vapores ferventes das panelas a envolviam até a náusea. A hora da sesta tampouco trazia alívio, pois o sono era pesado e a levava a pesadelos diurnos que eram sempre mais terríveis do que os da noite. Mesmo assim, era preciso escapar do escaldante sol da uma hora da tarde abrigando-se na penumbra dos quartos da casa, sentir o cheiro das coisas velhas, olhar entediadamente para o teto de madeira e as suas  teias de aranha ou para os móveis quietos da casa.  Nessas horas arrastadas, ouvia o galo cantar longe dali, a quietude revelava o rangido das madeiras do assoalho, a respiração dos ocupantes dos outros cômodos. Mantinha-se nesse exercício de escutar até o chão ressonar com o trote manso dos peões em seus cavalos, rumo ao campo para a jornada da tarde. Nunca sabia se tinha de fato dormido ou se ficara todo o tempo a decifrar os sons da casa. Uma pequena redenção era a chegada da noite. O céu cobria-se de alaranjados e rosas, os animais recolhiam-se e a noite avançava lentamente. Por alguns minutos, o esperado alívio. Da janela do banheiro, lavando-se com a água fresca do poço, via a lua, imensa, nascendo vermelha. Mesmo bela, era um sinal de que o calor permaneceria.  Neste momento, o desânimo a devorava. Era o fim de mais um dia.
Em uma dessas noites, com as coxas grudadas de suor e a nuca encharcada, entrelaçou ideias desordenadas e repetitivas sobre quando a estação ingrata haveria de acabar. Doeu-lhe profundamente não poder contar com o refúgio imaginário dos dias frios. Ficar sob as cobertas pesadas enquanto não era hora de levantar, consolada pelo cinza chumbo do  inverno, imóvel, como num canto de si mesma. Sentia-se mais viva nos dias de vento forte, frio e revoltoso.  Pensou em como, todos os anos, ansiava pela chegada do inverno, quando o rádio alertava a aproximação das  frentes frias, que inevitavelmente formavam violentas tempestades.  Nunca desejara tanto ver uma tormenta se armando no horizonte.
De madrugada, Teresa acordou ouvindo a janela do quarto que batia forte. Nuvens de poeira invadiram a peça, banhando-a de translúcidas partículas que se colaram ao corpo ainda úmido de suor. Saiu correndo e, afoita, olhou para o céu e viu nuvens avançando ágeis sobre a sua cabeça. Enfim a tormenta viria. O vento sacudia os eucaliptos e carregava folhas soltas em pequenos redemoinhos que a envolviam enquanto girava, só e desvairada, no pátio da casa. Sentiu prazer em cada trovoada, em cada relâmpago que atravessava o breu e esperou avidamente pelas primeiras gotas de chuva.
 Mas as gotas não caíram. O mesmo vento que trazia a chuva, carregou-a para longe. Teresa voltou a seu quarto. A madrugada corria solta e nenhum sopro de brisa adentrava a janela.

Nenhum comentário: