quarta-feira, março 14, 2007

O tradutor das Mil e uma noites



Foi o avô libanês quem presenteou o menino Mamede com um exemplar de histórias infantis adaptadas do Livro das Mil e uma noites. Os anos se passaram e, hoje, o brasileiro Mamede Mustafa Jarouche é festejado como o primeiro tradutor a verter esse clássico diretamente dos manuscritos árabes para o português. Tarefa de fôlego que teve início em 2003 e ainda deve levar mais alguns anos. Até agora, dois tomos já foram publicados, e o terceiro deve chegar às livrarias no final deste ano. “Tenho quase meio milhão de caracteres traduzidos desse terceiro volume, quase a metade desta edição”, contabiliza o tradutor. Certamente, lá se vão também mais de mil e uma noites de trabalho, e pelo menos outros três volumes serão necessários para completar a publicação da obra.

O manuscrito mais antigo das Mil e uma noites remonta ao século 13. As principais fontes da tradução que está sendo realizada por Jarouche são três manuscritos árabes que estão na Biblioteca Nacional de Paris. Os primeiros dois volumes da tradução trouxeram as narrativas que a crítica filológica chama de ramo sírio. São textos copiados entre os séculos 14 e 18 na região árabe-asiática que hoje corresponde ao Líbano, à Síria e à Palestina. Esses escritos terminam na 282ª noite. As demais noites estão nos manuscritos do chamado ramo egípcio, sendo que o mais antigo data do século 17.

No Ocidente, a trajetória das Mil e uma noites tem início em 1704, quando o arabista francês Jean Antoine Galland, após uma temporada em Estambul, fez a primeira tradução do livro no Ocidente. Sua versão, segundo Borges atesta no ensaio “Os tradutores das Mil e uma noites”, incorporou histórias que o livro não tinha, como a de Aladim e a dos quarenta ladrões (aliás, é interessante notar que os árabes, exímios matemáticos, gostavam de usar cifras nos títulos de suas narrativas). O fato é que, para Borges, a versão de Galland é a pior escrita de todas, a mais “embusteira” e “fraca”. Paradoxalmente, foi a que teve os mais interessantes leitores. Borges lista Thomas de Quincey, Coleridge, Stendhal, Tennyson, Edgar Allan Poe e Newman. E Jarouche completa que seguramente Voltaire e Montesquieu também foram leitores do livro.

“A tradução das Mil e uma noites participou da formação de um imaginário europeu sobre o Oriente Médio e ajudou a fundar a ciência conhecida como Orientalismo”, diz Jarouche. Muitas vezes, as traduções também participaram da criação de um estereótipo do árabe. No entanto, ressalta o tradutor, é preciso lembrar que mesmo no mundo árabe As mil e uma noites é considerado como literatura fantástica.

Jarouche, que além de tradutor é professor do curso de árabe da Universidade de São Paulo (USP), acredita que o grande fascínio despertado por esse livro tem duas causas principais. Uma delas é a questão feminina, o fato de ser uma mulher quem domina a narrativa. A segunda está no próprio título: “Como disse Borges, é o título mais bonito que um livro pode ter”, lembra Jarouche. As histórias também revelam um dos traços fundamentais da maneira de ser do árabe, muito direta e objetiva. “Perpassa o livro a idéia de que as coisas somente ocorrem movidas pelo desejo humano”, diz Jarouche.

Parece que o fascínio do livro continua em alta. A recepção pelo público-leitor brasileiro é, de certa forma, surpreendente. Mais de 20 mil exemplares vendidos apenas dos dois primeiros volumes. Em reconhecimento ao trabalho árduo, Jarouche obteve três importantes prêmios: o Jabuti de Melhor Tradução em 2006, o de Melhor Tradução do Ano da Associação Paulista dos Críticos de Arte e o Prêmio Paulo Rónai de Tradução, os dois últimos recebidos em 2005. Antes, ele já havia traduzido dois outros textos clássicos da literatura árabe: As cento e uma noites e o Livro de Kalila e Dimna. Jarouche surpreende-se com as mensagens que tem recebido dos leitores. “As pessoas me agradecem por ter feito a tradução!”, conta ele, e modestamente completa dizendo que está apenas cumprindo seu papel como pesquisador da Universidade.

Para Jarouche, uma das maiores dificuldades na realização da tradução é o vocabulário muito antigo, os muitos termos em desuso. Outro problema, diz ele, é que por vezes, a construção do texto em árabe, quando traduzido ao português, resulta redundante. O tradutor conta que se preocupa em ler em voz alta o texto traduzido para testar sua sonoridade no português, evitando as cacofonias. Houve também o cuidado de transcrever o nome dos personagens de uma forma que se aproxime o maxímo possível da pronúncia do árabe. Por exemplo, o nome da condutora da narrativa, que costuma ser grafado como Xerazade, desta vez aparece como Shahrazad.

O leitor também pode esperar encontrar nessa tradução passagens mais fortes que foram amenizadas ou mesmo suprimidas de algumas edições realizadas ao longo da história. “Há trechos obscenos e muitas metáforas sexuais”, diz Jarouche. As histórias também são testemunhos de como a sociedade árabe dividia seu espaço doméstico e público nesses séculos que correspondem, no Ocidente, à Idade Média, mas que no mundo árabe, ao contrário, foram séculos de intenso prazer e celebração da vida. “Enquanto no Oriente eram escritos tratados eróticos que contemplavam o prazer masculino e feminino, o Ocidente vivia uma época de mortificação da carne”, diz Jarouche.

Obs: Texto publicado originalmente no DC Cultura de 10/3/2007.