* Por Marlova Aseff
As freqüentes
viagens do escritor uruguaio Felisberto Hernández (1902-1964) pelas
cidadezinhas do interior do Uruguai e da Argentina formaram a matéria da
experiência que esse pianista-escritor levaria para a maioria das suas
narrativas. Impossível não lembrar Walter Benjamin, para quem havia dois
tipos arquetípicos de narradores: o sedentário, representado pelo camponês, e o
marinheiro-comerciante. Pois Felisberto Hernández é dessa segunda estirpe: um
navegador que percorria o pampa uruguaio e argentino – cuja planície foi muitas
vezes comparada à vastidão do mar – e aportava em lugarejos onde
recolheu o substrato de sua original literatura.
Mais conhecido em seu tempo como
pianista do que como escritor, o uruguaio era ao mesmo tempo galante (teve
várias mulheres) e glutão (de tão gordo, quando morreu, seu caixão teve de ser
retirado pela janela do prédio). Esteve fora do cânone literário de seu país
durante quase toda sua vida. Conforme estudo realizado por Alejandro Gortázar
na Universidad de La República (Uruguai)[1],
sua literatura apareceu pela primeira vez em uma antologia do conto daquele
país somente em 1962, dois anos antes de sua morte. Talvez a explicação para
esse fato resida em dois fatores que não se excluem: por um lado, a
originalidade de seu estilo retardou o reconhecimento de sua obra por parte da
crítica. Por outro, seus estranhos relatos necessitam de um público leitor que
esteja disposto a renunciar ao linear.
Na década de 70, escritores como
Italo Calvino e Julio Cortázar escreveram prólogos elogiosos para traduções
para o italiano (1974) e o francês (1975). Em 1977, um grupo de estudiosos do
Centro de Investigaciones Latinoamericanas da Universidade de Poitiers publicou
uma série de estudos dedicados à obra de Felisberto Hernández[2].
No entanto, as primeiras críticas foram divulgadas pela equipe do lendário
semanário uruguaio Marcha. Nessa publicação, críticos como Ángel Rama, Emir
Rodríguez Monegal, Mario Benedetti e José Pedro Díaz, entre outros, fizeram
suas apreciações (nem todas positivas) sobre a produção literária de
Felisberto.
Para Calvino, Hernández “não se parece com nenhum outro escritor”. Para
Cortázar, a obra do uruguaio “não responde a influências perceptíveis”. Sua
produção já foi considerada literatura imaginativa, fantástica, surrealista.
Essa última denominação foi criticada por Cortázar, que acusava a crítica de,
por não saber como enquadrar a obra, “tirar da cartola o grande coelho branco
chamado surrealismo”.
Pablo Rocca, professor da
Universidad de La República (Uruguai), chama a atenção para o rico contexto de
tensões no qual se formou a literatura de Hernández, como: campo e cidade,
vanguarda e criollismo, realismo e
formas do fantástico, modernização e conservadorismo. A temática insólita dos
contos, segundo Cortázar, alia o cotidiano ao excepcional a ponto de mostrar
que podem ser a mesma coisa. Além disso, em seus textos aparecem o registro coloquial (uma raridade na época) e um humor sutil e melancólico.
A obra de Felisberto Hernández divide-se naturalmente em três períodos com características diferentes. De 1925 a
1931, época em que inicia sua criação literária e lança pequenos livros sem
expressão: Fulano de tal (1925), Libro sin tapas (1929), La cara de Ana (1930) e La envenenada (1931). A partir de 1942, começa a segunda fase,
quando publica relatos mais extensos nos quais privilegia a memória e a
evocação. Pertencem a esse período Por los tiempos de Clemente Colling, El caballo perdido e Tierras de la memoria (publicado
postumamente). O
terceiro e último período é representado pelo conjunto de seus contos: Nadie encendía las lámparas (1947), Las hortensias (1949) e La Casa Inundada (1960).
Traduções brasileiras:
O cavalo perdido e
outras histórias. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Tradução de Davi Arrigucci
Jr.
As hortensias/Las
hortensias. São Paulo: Grua, 2012 (edição bilíngue). Tradução de Pablo Cardellino Soto e Walter
Carlos Costa.
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