“Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo.” - Walter Benjamin
Uma literatura sórdida, na qual a degeneração humana é como uma fratura exposta: assim é o universo ficcional do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994). Onetti faz parte da geração de 45, intelectuais de Montevidéu que publicavam contos e relatos curtos com temas urbanos e cosmopolitas. Em 1939, lançou El pozo, romance que, para Mario Vargas Llosa, foi responsável pelo ingresso da ficção latino-americana na contemporaneidade. Segundo o crítico literário uruguaio Pablo Rocca, esse foi um relato fetiche para a nova geração de escritores de então, “um texto chave da modernidade narrativa, da origem de uma prática estética, assinalando a fronteira entre duas épocas”. No mesmo ano em que publicou El pozo, Onetti assumiu o cargo de secretário de redação do lendário semanário uruguaio Marcha, no qual escreveu uma série de artigos atacando a literatura realista de orientação rural, abrindo espaço para o urbano na ficção do continente. Ao longo de 60 anos atuando como escritor, compôs “um grande tango existencial”, conforme definição inspirada do colega e conterrâneo Mario Benedetti. Seu mundo ficcional é habitado por personagens solitários, fracassados e, muitas vezes, neuróticos. São narrativas entre quatro paredes – no interior de cômodos, cabarés ou escritórios. Quando as personagens saem para o mundo externo, é quase sempre na penumbra indefinida da noite. Tanto os ambientes como a linguagem costumam instalar um clima de pesadelo, como ocorre em La vida breve (1950). Nesse romance, aparece a cidade de Santa María, território imaginário no qual ele viria a ambientar várias de suas histórias. Onetti confessou certa vez que Santa María era fruto da nostalgia que sentia de Montevidéu, terra natal que teve de abandonar em 1974, depois de ser preso pela ditadura militar instalada no Uruguai em 1973. A prosa turva e pastosa, como a classificou Anderson Imbert em sua História da Literatura Hispano-americana, deu corpo a dezenas de romances, novelas e contos. Em 1979, vivendo no exílio na Espanha, publicou Dejemos hablar el viento, livro que o consagrou perante a crítica européia e cuja repercussão culminou, em 1980, na obtenção do Cervantes, o mais importante prêmio literário da língua espanhola. Mesmo com o fim da ditadura no Uruguai, o exílio em Madri prolongou-se voluntariamente até sua morte, em 1994.
Quero defender que o procedimento de Friedrich Nietzsche acerca da interpretação, exposto na primeira dissertação de Genealogia da Moral, foi o ponto-de-partida para Helen Caldwell marcar seu gol enquanto crítica literária. Lembrando o título de um dos primeiros romances de Machado de Assis, parece-me que o pensamento genealógico de Nietzsche e a leitura inovadora de Dom Casmurro feita por Caldwell no início dos anos 60 são como “a mão e a luva”. Explico. Como bem sabemos, e a própria Caldwell explicita em seu livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis[1], praticamente três gerações de críticos anteriores a esse estudo consideraramDom Casmurro uma história de traição na qual Bento Santiago era a vítima da dissimulada Capitu, mulher, sem dúvida alguma, culpada de adultério.Um exemplo de como os críticos costumavam interpretar Dom Casmurro é o seguinte trecho de 1917:
Passemos agora a Dom Casmurro. É um livro cruel. Bento Santiago, alma cândida e boa, submissa e confiante, feita para o sacrifício e para a ternura, ama desde criança a sua deliciosa vizinha, Capitolina – Capitu, como lhe chamavam em família. Esta Capitu é uma das mais belas e fortes criações de Machado de Assis. Ela traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça. Dissimulada por índole, a insídia é nela, por assim dizer, instintiva e talvez inconsciente Bento Santiago, que a mãe queria fosse padre, consegue escapar ao destino que lhe preparavam, forma-se em direito e casa-se com a companheira de infância. Capitu engana-o com o seu melhor amigo, e Bento Santiago vem a saber que não é seu o filho que presumia do casal. A traição da mulher torna-o cético e quase mau.[2]
Dom Casmurro foi lançado em 1900; Caldwell publicou sua tese em 1960. Durante exatas seis décadas, nenhum crítico ousou questionar a palavra do narrador, no caso, Bento Santiago. A pergunta é: como Caldwell inverteu o jogo, abrindo essa nova via interpretativa? Lembremo-nos de Nietzsche, quando explica a origem das palavras “bom” e “mau”, noção que desvela que a interpretação deve sempre levar em contaquem diz o quê, para quem, que posição ocupa e o que pretende com essa fala[3]. Ora, mas não foi exatamente esse o ponto de vista inovador de Caldwell no estudo de Dom Casmurro? Até então, os críticos não haviam se feito essas questões. Por meio delas, Caldwell abriu novas perspectivas de leitura para o romance.
Outro crítico machadiano, Roberto Schwarz, aponta três possíveis leituras sucessivas que a obra pode suscitar, sendo que devemos a última ao olhar de Caldwell. São elas:
Romanesca, onde acompanhamos a formação e decomposição de um amor; outra, de ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher.[4]
É interessante ressaltar que a partir da interpretação de Caldwell, surgem novas importantes perspectivas de leitura do romance, como as dos críticos Roberto Schwarz e John Gledson.[5] O importante é que, com Caldwell, o leitor tomou consciência de que a própria história do suposto adultério foi interpretada primeiramente pelo narrador, uma noção tipicamente nietzschiana.
Bento Santiago, o representante da classe dos senhores de escravos, conta-nos sua história para fazer-nos partilhar de sua crença que, de fato, Capitu (a menina pobre) o enganara, e que esse fato o transformou numa pessoa “fria”. Caldwell coloca o narrador sob suspeição, inaugurando o “paradigma do pé atrás”, para citar as palavras de Abel Baptista. Depois dessa interpretação, já não podemos mais confiar no narrador, pois ele pode estar encobrindo interesses particulares ou nefastos. Ou melhor, os interesses vinculados à posição que ocupa. Embora não existam provas concretas dessa traição, devemos acreditar em Bento, uma personagem extremamente ciumenta? Mas se é assim, por que demorou tanto tempo para que essa leitura fosse levada a cabo? Para Gledson, uma das explicações é a de que os narradores em primeira pessoa criados por Machado
(...) foram intencionalmente concebidos para agradar o leitor, aliciá-lo no sentido de aceitar o ponto de vista do narrador. Concordamos com eles porque compartilhamos suas atitudes – é por isso que a (possível) inocência de Capitu levou tanto tempo para ser descoberta e, talvez, também por isso, foi descoberta por uma mulher.[6]
Schwarz também destaca a importância do fato de Caldwell ser estrangeira, mulher e criada em uma cultura protestante. O leitor e os críticos brasileiros estariam tão impregnados com a cultura católica e os preconceitos de classe locais que se deixaram levar pela palavra do narrador. Ele sugere que “se a reviravolta crítica não ocorre ao leitor, será porque este se deixa seduzir pelo prestígio poético e social da figura que está com a palavra”.[7]
Por isso, acredito que o procedimento nietzschiano está fortemente presente na guinada interpretativa de Dom Casmurro, pois a proposição-chave de Caldwell foi perguntar: “quem está com a palavra, afinal?”. Ela apontou a força ativa ou dominante do texto (Bento Santiago) e a força reativa ou dominada (Capitu). A partir dessa identificação, tomou para si a tarefa de inverter essas posições. No entanto, ela desvirtua-se da filologia rigorosa apregoada por Nietzsche quando se empenha em provar que a intenção primeira de Machado de Assis era que entendêssemos Bento como um ser movido pelo delírio do ciúme, já que o escritor teria baseado-se em Otelo para escrever sua história, e que, por tabela, Capitu é tão inocente como assim o era a Desdêmona de Shakespeare. O fato é que não é possível chegar a uma conclusão sobre o adultério de Capitu. E nisso peca Caldwell em sua crítica: tentando inocentar Capitu a todo o custo, incorre no erro de querer encontrar uma verdade que não está no texto. Sob o viés da filologia rigorosa nietzschiana, a interpretação de Caldwell é válida por abrir uma nova perspectiva de interpretação, mas não quando tenta desvendar uma verdade original do texto.
2. Leitura ruminante e interpretação
Uma curiosidade, ou melhor, uma identidade inusitada entre Nietzsche e Machado de Assis é o conceito de leitura ruminante. No capítulo 55 de Esaú e Jacó, livro escrito logo após Dom Casmurro, Machado fala que “o leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar escondida”.
Mas Machado também fala da necessidade de o leitor preencher lacunas, o que aponta para as várias possibilidades de interpretação, já que cada um poderia preencher tais lacunas como grande liberdade. Essa concepção machadiana está em Dom Casmurro, quando o narrador alega ter “memória fraca” para assim desculpar-se das omissões: “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. (...) É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas”.[5]
3. Uma aproximação ao método de Espinosa
Outra das formas pelas quais Caldwell procede sua interpretação de Dom Casmurro é valer-se das demais obras e textos de Machado de Assis. “Uma vez que o conjunto da obra de Machado de Assis apresenta a emergência de um intelecto estável e consistente, mergulhei em suas obras para elucidar um único romance.”[6]
Aqui, é possível fazer uma ligação com o método de interpretação das Sagradas Escrituras proposto por Espinosa[7]. O filósofo afirma que devemos “Coligir as opiniões contidas em cada livro (das Escrituras), reduzi-las aos pontos principais, por forma a encontrarem-se facilmente todas as que se referem ao mesmo assunto.”[8]
Caldwell adota esse procedimento durante toda a sua análise, mas principalmente no capítulo “O germe”, no qual analisa o livro Ressurreição, primeiro romance de Machado, que trata do tema do ciúme e também tem Shakespeare como inspiração. No capítulo “O que há num nome”, ela analisa a simbologia dos nomes das personagens machadianas, não apenas em Dom Casmurro, mas nos contos e romances do Bruxo do Cosme Velho. Vale lembrar que Espinosa afirmava que a história da Escritura deveria “descrever os pormenores de todos os livros dos profetas, bem como a vida, os costumes e os estudos de cada um dos autores (...)”.
Assim, este pequeno artigo tentou demonstrar de que maneira as teorias de Nietzsche e de Espinosa operaram em um importante trabalho da crítica literária do século 20, que foi a análise de Dom Casmurro feita porCaldwell.
[1] Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 15, 1998.
[2] Ferraz,Mª Cristina Franco. Nove variações sobre temas nietzschianos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, pág. 17,2002.
[3] Foucault, Michel. “Nietzsche, Freud, Marx”. In: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Organização e seleção de Manuel Barros da Motta.Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, pág 40, 1995.
[4] Ferraz,Mª Cristina Franco. Nove variações sobre temas nietzschianos Rio de Janeiro: Relume Dumará, pág. 15,2002.
[5] Machado de Assis. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM, pág. 116, 1997.
[6] Caldwell, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Tradução de Fábio Fonseca de Melo. Cotia: Ateliê Editorial, pág. 13, 2002.
[7] A hermenêutica, ou arte de interpretar textos, surgiu como uma disciplina auxiliar da teologia e hoje tornou-se a ciência da interpretação de todos os textos. Ver Compagnon, Antoine. O demônio da teoria, tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG, pág. 59, 2001.
[8] Espinosa, Baruch de. “Da interpretação das escrituras”. In: Tratado teológico - político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, pág. 209, 1988.
[1]The brazilian Otelo of Machado de Assis foi publicado em 1960 pela University of California Press.
[2] Alfredo Pujol, Machado de Assis, São Paulo: Typographia Levi, p.240, 1917.
[3] Ver os aforismos quatro e cinco da Genealogia da Moral, que tratam da filologia a partir do ponto-de-vista de quem fala, ou seja, a força ativa.
[4] Schwarz, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 10, 1997.
[5] Schwarz interpreta a estrutura do romance como informação de uma estrutura social, ou seja, as relações de classe representadas. Gledson tenta demonstrar que Dom Casmurro é um romance genuinamente realista, pois“proporciona um panorama da sociedade brasileira do século 19”, que vivia então uma crise dos valores paternalistas.
[6] Gleson, John. Machado de Assis: impostura e realismo, Tradução de Fernando Py. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 9, 1991.
[7] Schwarz, Roberto. Duas meninas. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 10, 1997.
[8] Machado de Assis. Esaú e Jacó, Obras Completas, volume 1. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, pág.1109, 1997.
Obs: Apresentado no 9º Congresso Internacional da Abralic
Babel: uma maldição ou uma bênção? Essa reflexão norteia as mais de 450 páginas de Em busca da Língua Perfeita, livro escrito pelo intelectual italiano Umberto Eco. Nesse projeto, Eco tentou reunir um pouco de todas as utopias européias a respeito da busca de uma língua perfeita ou da língua original, aquela falada por Adão, assim como projetos de línguas universais. A tarefa foi extensa, pois passeia por dois mil anos de história, sendo que, apenas o século 19 teve 173 projetos de línguas internacionais. Ao contrário do que poderia se esperar, Eco não situa seu trabalho no campo da lingüística ou da semiótica, mas da história das idéias. Embora o tema da confusão de línguas (assim como o desejo de remedia-la criando uma língua universal) esteja presente em diversas culturas, o autor optou por restringir seu estudo à Civilização Européia, até mesmo porque a obra faz parte do projeto The making of Europe, coordenado pelo historiador francês Jacques Le Goff,. Lançado em 1993, o livro se insere no projeto de consolidação da União Européia e, por isso, foi editado simultaneamente por cinco editoras do Velho Continente (C.H. Beck, de Munique, Blackwell, de Oxford, Crítica, de Barcelona, Laterza, de Roma e Seuil, de Paris). Se no princípio era o verbo, pode-se dizer que também nesta história tudo começa no Velho Testamento: o capítulo 11 do Gênesis justifica a existência de tantas línguas diferentes como uma punição divina pela soberba humana. Porém, no capítulo 10, há uma contradição que abre a possibilidade de essa diversidade não ser entendida como uma desgraça. Falando sobre a difusão dos filhos de Noé, depois do dilúvio, a Bíblia diz que "desses derivaram as nações disseminadas pelos litorais (...) cada um com a própria língua (...)". Ou seja, antes do desmoronamento da Torre de Babel, a diversidade de línguas já estaria presente. Desgraça ou bênção, a curiosidade ou a nostalgia pela época que precedeu Babel e sua ''confusio linguarum'' moveu numerosos estudiosos da região em diversas épocas. Em seu livro, Eco nos dá elementos para entender essa obsessão. Os gregos do período clássico já conheciam povos que falavam outras línguas, mas os chamavam de bàrbaroi, ou seja, seres que balbuciavam falando de forma incompreensível. Os filósofos gregos acreditavam que sua língua era o idioma da razão: Logos era pensamento e Logos o discurso. Com a expansão dessa civilização, uma língua grega unificada e uniforme (chamado Koinè) é ensinado nas escolas de gramática e se torna a língua oficial de toda a área dominada por Alexandre Magno. Sobrevive durante a dominação romana como língua cultural e se torna a língua em que são transmitidos os primeiros textos do cristianismo. A preocupação com a natureza e origem da linguagem está presente desde então: a obra Crátilo, de Platão, indaga se o nomóteta[1] escolhera palavras que nomeiam as coisas conforme a natureza de cada uma (tese de Platão), ou se determinou tais palavras por lei ou convenção humana (tese de Hermógenes). Na época em que o grego (koinè) ainda domina a Bacia Mediterrânea, o latim começa a impor-se e se espalha por toda a Europa dominada pelos romanos para se tornar a língua da cultura cristã no Ocidente. Entre a queda do Império Romano e a Alta Idade Média, a Europa não existia ainda como unidade geográfica. Novas línguas se formaram lentamente, e calcula-se que no fim do século V, o povo já não falava mais o latim. Surgiram dialetos locais que misturavam o latim, linguagens anteriores à civilização romana e raízes introduzidas pelos bárbaros. Após a queda do Império Romano, há o nascimento dos reinos romano-barbáricos. A Europa apresenta-se então como uma Babel de línguas novas, e, somente depois, como um mosaico de nações. Cito o autor: "A Europa inicia-se com o nascimento das linguagens vernáculas (...), a sua irrupção inicia a cultura crítica da Europa que enfrenta o drama da fragmentação das línguas e começa a refletir em torno da própria civilização multilíngüe." Para Eco, a cultura européia tentou sanar este problema de duas formas: olhando para trás, em busca da língua de Adão, ou para frente, tentando construir uma língua da razão. Explicadas as motivações profundas desta obsessão, podemos falar do vasto conteúdo de Em busca da Língua Perfeita. Eco dividiu a pesquisa em quatro grupos de interesse. O primeiro grupo engloba as línguas históricas, consideradas perfeitas em algum momento por serem dadas como originárias ou misticamente perfeitas. Entre as línguas sagradas estariam o hebraico, o egípcio e o chinês. No grupo das línguas especiais por sua relação com a razão estariam o grego, o latim e, a partir do século 16, várias línguas nacionais. Eco se detém em análises da Cabala (a idéia da criação do mundo como fenômeno lingüístico), dos trabalhos de Dante Alighieri (que na Idade Média reconheceu a linguagem como uma faculdade universal) e Raimundo Lúlio (com o projeto da Ars Magna, língua filosófica perfeita mediante a qual seria possível converter os infiéis). O segundo grupo de projetos abarca os estudos para a reconstrução da língua originária, a "língua-mãe". Aqui, Franz Bopp, Friedrich e Wilhelm von Schlegel procuraram encontrar relações entre o sânscrito, o grego, o latim, o persa e a língua deles, o alemão. Esses projetos se iniciam no século 18 e avançam no século 19. Chegou-se à hipótese de que o sânscrito não foi a língua originária, mas sim toda uma família de línguas (inclusive o sânscrito) teria se derivado de uma protolíngua (língua ancestral) não mais existente, que poderia ser o indo-europeu. O terceiro grupo de projetos é o de línguas construídas artificialmente e, por último, as línguas mais ou menos mágicas, que aspiram à perfeição pela expressividade místico-simbólica. Há uma grande diferença entre a procura da língua perfeita, movida talvez pela crença de que como a estrutura da linguagem representaria a estrutura da realidade, a língua perfeita engendraria o mundo perfeito, e a busca da língua universal, que seria falada em todo o planeta. De volta ao início, nos perguntamos: afinal, a multiplicidade de línguas é positiva ou negativa? Nas páginas finais, Eco advoga a favor da diversidade e sugere que propósitos diversos estão por trás dos atuais projetos de LIAs (Línguas Internacionais Auxiliares), uns nobres, e outros nem tanto. Esses projetos serviriam ao o sonho da integração, mas também trazem a ameaça de dominação cultural e econômica. O poeta francês Michel Deguy, em entrevista à Revista Cult de novembro de 2001, afirma que a diferença de línguas é o último freio à instantaneidade das trocas econômicas. "Babel breca o mercado, mas o mercado infelizmente é mais forte do que tudo", afirma Deguy, que acredita que caminhamos para algum tipo de Esperanto. "Preciso de três segundos para transmitir uma ordem bancária, mas de 30 anos para traduzir Borges - e esse retardamento, que permite captar o tempo longo da tradição, é um grande obstáculo ao grande mercado mundial - e por isso há uma guerra", diz Deguy. No capítulo final, Eco cita V.V. Ivanov, a quem transcrevo aqui também para concluir: "Cada língua constitui um determinado modelo de Universo, um sistema semiótico de compreensão do mundo, e se temos 4 mil modos diferentes de descrever o mundo, isto nos torna mais ricos. Deveríamos preocupar-nos pela preservação das línguas tal como nos preocupamos com a ecologia".
EM BUSCA DA LÍNGUA PERFEITA Assunto: Semiologia Editora: Edusc Páginas: 458Formato: 14X21 cm Preço: R$ 39ISBN: 85-7460-109-8 Autor: Umberto Eco Tradução: Antonio Angonese
Pode ser Juan Dahlmann às voltas com um velho exemplar de As mil e uma noites no conto "El Sur", ou mesmo o cego Malaquias de O nome da rosa: as bibliotecas e a figura daqueles que conhecem os segredos de seus labirintos sempre fascinam. Agora chegou a vez de Cristina Antunes contar um pouco de como é esse ofício. Principal colaboradora do bibliófilo José Mindlin na administração de sua biblioteca, Cristina está lançando Memórias de uma guardadora de livros. Ele, por sua vez, escreveu Memórias esparsas de uma biblioteca. Os dois volumes são apresentados em uma caixa, lado a lado, como que para comemorar a parceria harmoniosa de mais de 20 anos.
Com seu relato, Cristina nos leva por entre as prateleiras que abrigam a coleção de Guita e José Mindlin, contando histórias divertidas e interessantes ocorridas no interior dessa que é a maior biblioteca privada do país. Cristina, que formou-se em Pedagogia, circula com desenvoltura em meio aos cerca de 30 mil exemplares, dos quais 10 mil são raridades e 2 mil são verdadeiras preciosidades. "Não sou bibliotecária de formação, sou bibliotecária de paixão, de amor, de cuidado com o livro", diz ela, que ao longo dos anos também passou a exercer o trabalho de paleógrafa e tradutora. Cristina acabou contaminada pelo vírus dos colecionadores: formou sua própria coleção de literatura de cordel, que já conta com 800 folhetos.
Esse amor dedicado aos livros é o laço que une Cristina e Mindlin. Em 8 de setembro próximo, ele completará 90 anos e, a julgar pelas histórias relatadas no livro, sua memória deve ser, mais do que invejada, festejada. Ele conta com detalhes de como foi constituindo sua coleção, fala da amizade com nomes como João Cabral de Melo Neto, Thiago de Mello, entre outros. Relembra várias personagens que conheceu de perto, como editores, bibliófilos, estudiosos, livreiros, do Brasil e do exterior, e resgata a memória de editoras alternativas que foram importantes para a cultura brasileira do século 20.
Sua contribuição à cultura nacional, no entanto, transcende a atividade de bibliófilo. "Mindlin ama os livros e coleciona exemplares raros e preciosos, mas vai muito além disso: patrocinou a publicação de obras que pela importância dos textos e dos refinados projetos gráficos tornaram-se logo raridades, ajudou a manter importantes revistas literárias, patrocinou edições fac-similares de revistas fundamentais para a compreensão do modernismo no Brasil, auxiliou de muitas formas pesquisadores brasileiros e estrangeiros", ressalta o editor Cleber Teixeira no prefácio de Memórias esparsas de uma biblioteca.
Mindlin começou sua coleção aos 13 anos, quando comprou o Discurso sobre a História Universal, de Jacques Bossuet, uma edição portuguesa do século 18. Hoje, em se tratando de literatura brasileira, sua coleção supera até mesmo a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O conjunto inclui desde manuscritos dos Sermões do Padre Vieira a edições originais de relatos das primeiras viagens de cunho científico pelo Brasil, como a de Hans Staden, as cartas de dom Manuel ao Papa, os originais de Grande Sertão: Veredas e Sagarana, de Guimarães Rosa, e praticamente todas as grandes obras da literatura brasileira. Para ilustrar a riqueza do acervo, basta dizer que fazem parte dela as duas edições de Os Lusíadas datadas de 1572, coisa que nem a biblioteca de Lisboa dispõe. Além disso, mapas, centenas de gravuras em madeira, metal, aquarelas e matrizes de xilogravuras completam a brasiliana.
Os relatos nasceram de depoimentos a Dorothée de Bruchard e a Cleber Teixeira. Os volumes - editados pelo Escritório do Livro, de Florianópolis, em parceria com a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - fazem parte da coleção Memória do Livri. Em apêndice, o livro de Mindlin traz um ensaio inédito intitulado "O livro no Brasil: bibliotecas e tipografias". O volume assinado por Cristina também traz um artigo sobre a biblioteca ainda inédito no Brasil, publicado originalmente na Revista Portuguesa de História do Livro.
Publicada no "Caderno Cultura", Diário Catarinense em 21/08/2004.
Resenha de As chaves do século 21. Tradução de Luís Couceiro Feio. Lisboa: Editora Piaget, 2000, 533pp.
Fruto de conferências organizadas pelo gabinete de análise e previsão da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), com o objetivo de refletir sobre o futuro da humanidade, As Chaves do Século 21 é a primeira antologia dessas discussões travadas entre cientistas, intelectuais, criadores e grandes personalidades contemporâneas. Dividida em cinco partes, a obra apresenta aproximadamente 90 artigos que pretendem dar respostas às principais questões que preocupam o homem atualmente.
Nos capítulos dedicados à cultura, um dos questionamentos principais é se caminhamos para um choque de culturas ou para uma mistura das mesmas. Afinal, o fenômeno da globalização tem construído novos modos de relação entre os homens. Entre as conseqüência desses contatos está o desaparecimento de línguas minoritárias. Segundo o lingüista Laurent Sagart, atualmente, são faladas no mundo entre 5 mil e 6 mil e setecentas línguas. E somente menos da metade delas tem possibilidade de sobreviver ao ano de 2100. Por isso, defende que há um trabalho enorme a ser feito pela comunidade internacional, no sentido de promover o registro de línguas, vocabulário e literaturas orais. Enfim, as línguas são um patrimônio da humanidade, cada uma representando uma visão única do mundo. “Quando uma língua desaparece, é toda uma parte do pensamento humano, da literatura escrita ou oral e da mitologia que se perde com ela”, diz Stephen Wurm, diretor de publicação do Atlas of the world languages in danger of disappearing.
O futuro da literatura é discutido pelo escritor Philippe Sollers, um dos fundadores da revista Tel Quel nos anos 60, e pelo romancista grego Vassiklis Vassilikos, autor de Z, obra adaptada para o cinema por Costa-Gravas. Para Sollers, o homem é uma presa da literatura, pois está obrigado a sonhar. No entanto, teme por duas formas de censura: a primeira, caracterizada por perseguições e por assassinatos de escritores e jornalistas, como a que sofreu Salman Rushdie pelo Irã. A segunda forma está no risco de uma civilização “onde os livros abundam em toda a parte sem que ninguém os leia”. Para Vassilikos, o futuro da literatura é o seu passado. Ele acredita que embora nossa época seja marcada pelo vídeo e pela eletrônica, continua baseada na escrita. “A literatura não está apenas ligada a esta forma bem identificada que é o livro”, defende. Para ele, independentemente dos meios pelos quais esta arte for difundida, estará sempre vinculada ao mito e à história. “O futuro da literatura está ligado ao futuro do homem. Enquanto os homens continuarem a falar, também quererão exprimir-se pelo discurso.”
Edgar Morin, em seu artigo, propõe uma reforma do pensamento e da educação. Para o sociólogo, o problema do conhecimento ser cada vez mais fragmentado deverá acentuar-se neste século e exigirá uma solução. E a reforma do pensamento seria inseparável de uma reforma na educação. “O ensino não deve visar à acumulação de conhecimentos, mas organizá-los em função de eixos estratégicos essenciais”, afirma Morin, preocupado com a incapacidade atual de se pensar o mundo globalmente e em suas partes. Ele resume citando Montaigne, ensaísta que, já no século 16, dizia: “Vale mais uma cabeça bem feita do que uma cabeça cheia”. Outros dos objetivos do novo ensino seriam o de trabalhar a consciência da condição humana no cosmos, o de propiciar a convivência com os outros com nós mesmos e o de formar cidadãos com consciência ao mesmo tempo nacional e planetária.
O livro também discute a natureza do futuro. A idéia central é que, se o século 21 nasce sob o signo do fim das certezas, não somos capazes de prever como será o amanhã. Porém, é viável, sim, detectar no presente os germens dos futuros possíveis, começando a prepará-los desde agora. Há também uma reflexão sobre a espécie humana, abordando desde fatores como envelhecimento, demografia, biotecnologia, poluição, formas de energia, segurança alimentar, utilização da água e exploração do espaço. A terceira parte – que será detalhada a seguir - trata do que podemos esperar no campo da cultura. A vida em sociedade também é abordada, discutindo valores como democracia, direitos humanos, das mulheres, da infância. Ao final, reflete-se sobre qual será o futuro do trabalho e do tempo, além de como lidar com a crise no universo profissional provocada pelo fim do modelo fordista.
Jean Baudrillard traz à tona a discussão sobre o imaterial, o ciberespaço, o clone... E faz uma provocação ao perguntar se deixamos de ser reais. Pergunta esta a qual responde imediatamente: “Não. Sofremos mesmo um excesso de realidade porque fomos agarrados por uma empresa colossal e coletiva de realização do mundo, isto é, transferir potencialidades, sonhos, ilusões, para o real”, diz o sociólogo. Mais além de analisar questões importantes para o planeta, As Chaves do Século 21 tenta demonstrar que o declínio das utopias aumenta a responsabilidade da humanidade não somente com o futuro, mas fundamentalmente com o presente.